Sede de Chicago do Perkins and Will: estímulo à circulação com escadas entre os pavimentos, evitando aglomerações em elevadores (Foto: Divulgação)

A volta ao trabalho e o ‘novo normal’ dos escritórios

No universo dos interiores corporativos, a pandemia do novo coronavírus parece ter afetado drasticamente aquela que, em poucos meses, passou a ser percebida como a velha ordem, ensejando também pesquisas e discussões sobre o suposto 'novo normal'. Subitamente, empresas e negócios de naturezas e portes variados tiveram de aderir ao isolamento e incrementar o trabalho remoto. Agora, à medida que se inicia - ou se aproxima - a reabertura, projetistas tratam de construir protocolos para o retorno, imaginando como se dará o redesenho dos escritórios a partir das irreversivelmente alteradas relações de trabalho. Reunimos aqui o que importantes profissionais da área enxergam nesse horizonte próximo - embora ainda pouco nítido

“De um dia para o outro as empresas fecharam seus escritórios e colocaram todos em home office, uma prática pouco comum até então”, relata Antônio Mantovani, do Pitá Arquitetura, a respeito do que viu acontecer no Brasil, no início de março, repetindo eventos ocorridos pouco antes em outros países. O que se deu a seguir – em diferentes intensidades, conforme o município e o estado – foi o advento de um cenário quase irreal composto por ruas vazias, pouca gente e automóveis circulando, lojas e torres de edifícios corporativos trancados. Até o skyline de uma metrópole como São Paulo mudou quando o céu livre de tanta poluição e fumaça passou a tingir os crepúsculos com cores inéditas, desdobrando-se em noites cheias de estrelas – índice natural do gesto paralisante da pandemia.

Passados alguns meses – milhões de infectados pela Covid-19 e milhares de mortes depois -, o mundo começa o processo de reabertura aqui e ali, ensaiando um movimento de retorno que traz consigo inseguranças e incertezas. Muitas dúvidas acompanham a retomada: como será esse chamado ‘novo normal’ no tocante aos espaços corporativos? Haverá organização em turnos, maior distância entre as estações de trabalho, atenção redobrada à qualidade do ar condicionado e à higiene dos elevadores, por exemplo? Quantos (e quem serão eles) permanecerão em home office integralmente?

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 3,8 milhões de brasileiros trabalhavam de casa em 2018, número já 21% superior ao registrado em 2017. Em 2020, o panorama mudou significativamente. Realizada por meio digital nos dias 23 e 24 de março deste ano, uma pesquisa da empresa de monitoramento de mercado e consumo Hibou aferiu que 59,9% dos entrevistados no país, de setores tão distintos quanto serviços, comércio e indústria, entre outros, responderam estar trabalhando em suas residências durante a quarentena (veja no final da reportagem os links para esta e outra pesquisa da Hibou). A perspectiva é de consolidação. Segundo a pesquisa “Tendências de Marketing e Tecnologia 2020: Humanidade redefinida e os novos negócios” desenvolvida por André Miceli (coordenador do MBA em Marketing e Inteligência de Negócios Digitais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o Brasil testemunhará crescimento de 30% do home office após a pandemia. É justamente essa expressiva parcela da população que parece impulsionar transformações mais profundas, talvez até paradigmáticas, nas relações de trabalho.

 

Prospecção e protocolo

Líder da força-tarefa montada pelo Perkins and Will para examinar os protocolos disponíveis e redigir um manual próprio que auxilie no retorno ao ambiente corporativo, Renato Siqueira, diretor de operações do escritório paulistano, conta que o grupo multinacional agiu rapidamente. “Há 27 unidades mundo afora, sendo 20 delas nos Estados Unidos – e de imediato os americanos prepararam um guia”, conta ele, referindo-se ao processo iniciado por lá tão logo as primeiras obras e projetos foram interrompidos, paralisados temporariamente ou alvo de revisão por parte dos clientes. Elaborado com base nas contribuições das diversas sedes locais, o documento público em constante atualização tem sido apresentado aos parceiros do Perkins and Will e servido à prospecção de futuros trabalhos. Vale como um poderoso instrumento, espécie de bússola a apontar o melhor caminho, reforçando a ideia de que, observadas as orientações contidas nas 90 páginas do compêndio (veja  no link ao fim desta reportagem), será possível avançar com segurança na adaptação dos escritórios existentes à nova condição.”Trata-se de um material pautado pelo pragmatismo, repleto de medidas de segurança para essa flexibilização”, continua Siqueira, que acrescenta: “O fato de estarmos em uma empresa com presença global nos permitiu, por exemplo, computar as experiências do nosso escritório em Xangai, na China, que já retomou a operação e vem reportando o que funciona bem ou não”. Apesar de o Perkins and Will ter saído à frente, no entanto, na opinião do arquiteto a instabilidade do momento não permite falar de tendências; cabe melhor planejar como se dará a volta ao antigo escritório – em versão menos adensada, para evitar a transmissão da Covid-19 – e se debruçar sobre os ajustes necessários e possíveis para essa fase inicial. “Até porque, a qualquer instante, o advento de uma vacina pode interromper o processo em curso”, conclui.

 

Não acredito em uma mudança drástica, no esvaziamento do ambiente corporativo. Tenho em mente a história de uma empresa cujos funcionários, 40% deles, regrediram profissionalmente após cinco anos de trabalho remoto. Aqui mesmo no Perkins and Will, uma pesquisa interna perguntava do que os colaboradores mais sentiam falta no escritório durante a pandemia. A resposta de 70%: da convivência

No escritório de Miami do Perkins and Will, a sala de reuniões com uma única pessoa demonstra a nova regra: mais tecnologia (participação remota) e menos assentos ocupados (Foto: Robin Hill)

 

Na  empresa australiana Atlassian, outro projeto assinado pelo escritório, a intenção é observar 2 m de distanciamento social, recomendáveis sobretudo em áreas de convívio como cafeterias (Foto: Casey Dunn)

 

Ressignificação do lugar de trabalho

Antônio Mantovani conta que vem pensando bastante sobre o tema, numa ideação contínua, direto de sua residência. “Acho que essa retomada exigirá respostas em dois tempos: para o curto prazo, nos primeiros três ou seis meses, valerão as orientações que visam assegurar o distanciamento entre as pessoas e que tratam da disposição das estações de trabalho, da alternância dos assentos ocupados no espaço etc. Me intriga o que virá a seguir”, diz ele.

O integrante do Pitá Arquitetura afirma acreditar que, enfim, a revolução digital e tecnológica vai “entrar na cabeça de todos” – diferentemente de momentos anteriores, nos quais tentativas de aumentar a participação do home office na rotina dos escritórios esbarraram na ausência de rede e e-mail eficientes. “Agora não tem volta. Os gestores serão forçados a abrir mão da sensação de controle sobre os funcionários mantidos no mesmo espaço físico, algo enraizado culturalmente. Um fator de convencimento virá da diminuição dos custos com aluguel (uma vez que a área da sede poderá ser reduzida), assim como as despesas com transporte, por exemplo”. Empresas com mais recursos e perfil arrojado provavelmente vão estabelecer altas taxas de trabalho remoto, durante mais dias na semana; outras, nem tanto.

Para além desse primeiro impacto, porém, Mantovani postula uma ressignificação do lugar de trabalho. Na sua opinião, o cerne da mudança é justamente que o teletrabalho não seja sinônimo de estar em casa, mas que
o empregador possa oferecer alternativas aos colaboradores, tais como utilizar um coworking ou até mesmo um café com wi-fi para trabalhar. “As empresas vão encontrar fórmulas híbridas para funcionar, parte presencial, parte à distância, às vezes de um jeito, às vezes de outro. A percepção da cidade e da casa será outra, do tempo e do custo subjetivo dos deslocamentos também. Nessa linha de raciocínio, cabe imaginar que o antigo escritório torne-se menos o destino diário dos contratados, mero endereço funcional, e mais um lugar ocasional para troca de experiências, reuniões, encontro e descontração. “E vai ser redesenhado para ter ares de cartão de apresentação, aspecto necessário ao reforço da identidade da marca e da cultura da empresa, vital para restabelecer a filiação dos trabalhadores, algo importante porque o colaborador poderá estar presente fisicamente ali poucas vezes na semana”, continua o arquiteto. Não menos importante é o alerta que Mantovani faz quanto à legislação trabalhista, que, imagina ele, terá de ser revista e adaptada nesse futuro próximo.

 

Se antes o home office era uma espécie de ‘purpurina’ que dava ares de contemporaneidade às empresas, ele se provou viável na pandemia com a ajuda da tecnologia de nuvem, de rede. Mas não creio em 80% ou 90% de teletrabalho. O ser humano precisa de troca para crescer, precisa ver gente, precisa dessa interação menos objetiva e mais espontânea, horizontal


Bom design para afastar o medo

Antes de entrar na seara dos interiores corporativos, segmento em que o escritório Arealis é referência, e do qual é sócio, o arquiteto Enrico Benedetti faz uma provocação: “Pensando em como a pandemia vai impactar as nossas vidas, me preocupo mais com o futuro dos cinemas e restaurantes”. Esses espaços, na opinião do italiano radicado no Brasil, estão frontalmente ameaçados por uma emoção que ele vê ganhar força no ‘novo normal’ e redesenhar os ambientes: o medo. “Acho que estamos focando na segurança, o que é compreensível no período próximo à retomada da convivência e do trabalho presencial, mas essa ênfase realça o medo. E se o medo passar a orientar a arquitetura, teremos o que? Restaurantes com vidro entre os clientes?” O exemplo radical se aplica também aos interiores corporativos que, na hipótese de Benedetti, se tornariam excessivamente “hospitalares”, hipercontrolados. “Entendo que essa primeira etapa pautada na segurança seja praticamente obrigatória – e não sabemos se vai durar seis meses ou um ano -, mas me interessa pensar o que surgirá posteriormente, quando efetivamente poderemos contribuir. A nossa função como arquitetos é interpretar esse medo e transmitir confiança, beleza”.

A experiência recente ajuda a entender o que assombra Benedetti. Até pouco tempo atrás, muitos projetos de arquitetura corporativa surgidos no Arealis, assim como em outros escritórios especialistas, apresentavam como traço comum – respeitadas as peculiaridades de cada programa e cliente, claro – o incremento das experiências humanas e do compartilhamento. Como parte do ideário desse passado tão palpável, o partido arquitetônico comumente estabelecia áreas do tipo open space, estações de trabalho rotativas, mesas e bancadas para reuniões rápidas, cabines e sofás como pontos de encontro – para reforçar a ideia de colaboração e reduzir a hierarquia e o sigilo ao estritamente necessário. Estariam todos esses recursos fadados à lata de lixo da história? A alternativa vislumbrada pelo italiano é propor adaptações menos invasivas para o redesenho dos escritórios  atuais (tal como existiram até então), tendo como objetivo uma revisão, não a supressão do que foi feito. Sem ignorar as recomendações técnicas para obter a necessária segurança sanitária, cresceria em importância o componente emocional da arquitetura, capaz de resgatar a confiança. “Imagino que teremos de especificar materiais fáceis de limpar, por exemplo, evitando usar apenas aqueles com aspecto sintético”, diz, a respeito de um dos itens do tripé que sustenta sua proposta, formada também pelo bom design e pelas cores. “Esse tratamento estético pode ser muito eficaz e promover algo parecido com o que ocorreu com os hospitais décadas atrás, quando passaram a ser humanizados”. Mesmo assim, Benedetti desconfia que as pessoas terão medo no retorno imediato ao trabalho, e recomenda que o auxílio psicológico pode ser necessário.

 

Sem um projeto arquitetônico que aplaque o medo, o retorno ao ambiente de trabalho vai ser acompanhado de grande desconfiança e temor. Isso pode durar alguns meses, abalar a produtividade e requerer ajuda psicológica

Contratado por uma empresa brasileira que inaugurou um escritório em Xangai, o recentíssimo projeto do Arealis suscita dúvidas no arquiteto Enrico Benedetti, que indaga se cenas como esta se repetirão (Foto: Divulgação)

 

Neuroarquitetura e kit para home office

Com atuação que engloba arquitetura, engenharia e design para o mercado corporativo (e tem como carro-chefe o Informov Turnkey System, que reúne do projeto à execução da obra num único contrato), a IT’S informov se prepara para seguir as recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) na retomada. Os projetistas do escritório paulistano falam em três ondas: num primeiro momento, a volta ao local de trabalho contará com adaptações simples para garantir um mínimo de segurança e bem-estar (não obrigatoriamente soluções arquitetônicas); uma segunda etapa compreenderá mudanças mais robustas (algumas empresas podem passar diretamente para essa fase, que se deve durar até 90 dias); por fim, virá o ‘escritório do futuro’, que incorpora mudanças na cultura da empresa e depende do tipo de negócio e do nível de adesão à solução remota. Nesse ponto, defende, haverá uma redefinição da cultura do espaço de trabalho.

Atenta à força com que o home office  impactou a realidade das relações laborais durante a pandemia, a IT’S Informov ensaia sua própria versão de um kit básico para equipar o ambiente doméstico e ajustá-lo à função inédita – concebido para as empresas oferecerem aos seus funcionários, visando assegurar a eles mais saúde e produtividade. “Há estudos que sugerem montar esses conjuntos com uma cadeira ergonômica, um fone que cancela ruídos externos, um computador desktop ou notebook e uma mesa com rodinhas (que pode circular pela residência) ou um suporte acoplável em mesa existente”, diz Lívia Gimenez, arquiteta da IT’S Informov. “Desenvolvemos com um fornecedor parceiro uma mesa desse gênero, ideal para o home office. É feita com retalhos de madeira para ser rápida, prática e econômica”, prossegue.

A fim de apresentar respostas sob medida, ajustadas aos novos tempos, a aposta é converter expertise em diferencial. Já faz algum tempo que a neuroarquitetura e a biofilia despontam no portfólio da IT’S Informov. “Pesquisas comprovam uma melhora no rendimento dos funcionários em torno de 30% no caso de ambientes de trabalho projetados com base nessas técnicas. Acho que logo mais veremos espaços corporativos com ventilação natural (em vez de ar condicionado exclusivamente), muita iluminação natural e até terraços onde os colaboradores possam tomar alguns minutos de sol para sintetizar vitamina D”, cogita a arquiteta Lívia Gimenez, que explica: “O ciclo circadiano é muito importante na neuroarquitetura”.

 

Neste pavimento separado, o endereço paulistano da IT’S Informov materializa os princípios da biofilia levados à máxima potência – e serve de vitrine para essa especialidade do escritório de arquitetura (Foto: Alexandre Oliveira/Jafo Fotografia)

 

Conforme relatado pelos profissionais do escritório paulistano (que elaborou um guia de orientações, disponível no fim desta reportagem, a partir dos ajustes definidos para a própria sede), muitas perguntas acompanham os clientes nessa busca pela retomada e giram resumidamente em torno dos mesmos pontos: Devo reduzir o espaço alugado? Qual o melhor equilíbrio entre profissionais em teletrabalho e aqueles com posições fixas? E os espaços de foco, vão se sobrepor aos de descompressão e colaboração? Devo desativar o café e a copa? Não há resposta única.

“É um processo que tende a gerar interiores corporativos melhores, mais ricos, em que tudo vai sendo construído em parceria com o contratante. Há um reforço da singularidade, não cabe mais pensar em simplesmente replicar a velha fórmula do open space, tão comum em empresas de tecnologia e disseminada por aí”, conclui Douglas Enoki, gerente de arquitetura da IT’S Informov.

 

PARA SABER MAIS

Pesquisa sobre home office da IT’S Informov:
http://itsinformov.com.br/2020/MAIO/PESQUISA/APRES_PESQ_HOME%20OFFICE.pdf

Trabalho “Mapa do retorno ao trabalho”, do escritório Perkins and Will:
https://perkinswill.com/road-map-for-return/

Pesquisa “Covid 19 Rotina e Expectativas”, da Hibou:
http://www.lehibou.com.br/wp-content/uploads/2020/05/20CVD01A.pdf
Pesquisa “Depois do confinamento como fica?”, da Hibou: http://wwwlehibou.com.br/wp-content/uploads/2020/05/consumo-p%C3%B3s-confinamento.pdf