Hospital de campanha Parque dos Atletas / RJ (foto: V3A)

A arquitetura no enfrentamento da pandemia do coronavírus

No Brasil, já são mais de 100 hospitais de campanha implantados ou em vias de execução. Qual tem sido a participação dos arquitetos no processo e quais os parâmetros técnicos para os projetos? Abaixo, algumas das respostas

Tudo começou com uma chamada aberta aos arquitetos, feita entre março e abril pelo governo de Córdoba, na Argentina, para que se pensassem modelos de hospitais de campanha. A dupla Rodrigo Messina e Francisco Rivas, do escritório Messinarivas Arquitetura, sediado em São Paulo, respondeu ao encargo com um estudo arquitetônico baseado na ideia da verticalização da implantação. Combinando andaimes na estrutura – e a instalação temporária desenhada por Carla Juaçaba (junto com Bia Lessa) para o pavilhão Humanidades 2012, no Rio de Janeiro, era uma das referências dos arquitetos – com treliças espaciais de contraventamento e painéis tanto verticais quanto horizontais de vedação, dispostos de modo a criarem corredores técnicos e de isolamento entre os módulos de permanência, o seu argumento era o da maior eficácia arquitetônica se considerado o significativo aumento da quantidade de leitos em um hospital com mezanino, comparado com aquele térreo. O estudo, porém, não foi adiante, assim como o dos demais participantes do chamamento argentino por causa da inconclusão da ação. Começou, então, a tentativa da dupla de comunicar-se com governos e prefeituras no Brasil a fim de apresentar o seu trabalho. “Viralizamos a apresentação em grupos de WhatsApp até que chegou na Secretaria de Governo do Estado de São Paulo”, informam os arquitetos, que, após um estudo desenvolvido para a Secretaria da Saúde do Governo do Estado de São Paulo, deram sequência à jornada com os governos de Manaus e de Belém do Pará. Em paralelo, tentaram obter a capilaridade do estudo provocando a ponta oposta, ou seja, as empresas de montagem de andaimes, mas sem qualquer resposta positiva.

 

 

Em São Paulo, até o momento, foram implantados três hospitais de campanha, sendo dois pela municipalidade (no Estádio do Pacaembu e no Pavilhão de Eventos do Anhembi) e um pelo governo estadual, no Ginásio do Ibirapuera. “Quando começaram a surgir os primeiros casos [da doença], houve a preocupação com a super lotação dos hospitais da rede. Tendo em vista que nenhum sistema de saúde, em qualquer lugar do mundo, foi desenhado para atender pandemias, primeiramente criamos mais de 500 leitos adaptando áreas diversas nos equipamentos do Estado e implantamos também conteiners de ‘triagem’ no estacionamento de alguns hospitais para que os pacientes não tivessem contato com as pessoas no seu interior. Com base no aumento de número de infectados, no início de abril, optamos pela criação de um hospital de campanha. A ideia foi procurar locais (espaços abertos como campos de futebol) em pontos estratégicos para atendimento de casos de baixa e média complexidade, considerando-se como programa o estritamente necessário para uma unidade de ‘internação’ além de áreas essenciais de apoio e espaços para a realização de exames como tomografia. Começamos pela região central e abriremos o leque para as periferias, se necessário”, depôs em 12 de maio, para a PROJETO, o arquiteto Camilo Chingotte, da Secretaria da Saúde do Governo do Estado de São Paulo – Grupo Técnico de Edificações.

 

 

A velocidade é impressionante: desde que se decide pela construção do equipamento transcorrem, em média, escassos 20 dias até que um hospital efêmero esteja pronto para uso, nos informa o arquiteto, salientando que a unidade do Ginásio do Ibirapuera, totalizando 268 leitos, foi implantada em 15 dias. Natural que seja assim, dada a urgência da situação, mas quais as balizas que garantem a eficácia dos equipamentos?

“No início, como tudo aconteceu muito rapidamente, utilizamos como base a RDC 50”, explica Chingotte, referindo-se à norma técnica publicada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em 2002 a fim de regular a infraestrutura de estabelecimentos assistenciais de saúde brasileiros. Depois, a própria agência publicou uma nota técnica (NT 69/2020) em 9 de abril passado – voltada ao atendimento adulto em que não se requeira o nível de uma unidade de terapia intensiva -, atualizada quatro dias depois, contendo orientações específicas para hospitais de campanha. Nela, não constam modelos de espaços físicos, por exemplo, mas instruções de natureza sistêmica (que consideram também o uso dos espaços) além de uma lista de itens a serem contemplados pelo projeto arquitetônico e seus complementares nas sequenciais fases de desenvolvimento dos mesmos. Atenção especial é dedicada às instalações, sobretudo no que diz respeito à climatização, biossegurança, fornecimento e consumo de água e eletricidade, Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros e licenças ambientais.

Exemplar do quanto podem colaborar os arquitetos no processo, como prega a dupla do Messinarivas, está escrito na NT 69/2020 da Anvisa, por exemplo, que “as orientações podem ser complementadas e adaptadas à realidade local”. De fato, dentre as referências citadas na comunicação da nova norma da entidade, há uma mesa redonda virtual promovida em 17 de março pelo departamento do Rio de Janeiro do Instituto dos Arquitetos do Brasil, IAB/RJ, com a participação de profissionais da Associação Brasileira para o Desenvolvimento do Edifício Hospitalar (ABDEH), da Fiocruz e do próprio IAB. No que diz respeito aos ambientes de saúde, algumas das recomendações relativas aos espaço físico levantadas no encontro, são:

– Prever ventilação natural ou sistema de ar condicionado com renovação de ar; adaptar leitos de internação comum por meio da criação de barreiras técnicas provisórias com biombos e EPIs (Equipamentos de proteção individual) permitindo que a equipe esteja atenta e se paramente antes de entrar em contato com o paciente; instalar pias para lavagem de mãos em corredores e hall de acesso principal; afastar as poltronas em salas de espera; criar esperas em áreas externa e jardins (Doris Vilas-Boas, arquiteta Especialista em Sistemas de Saúde, Salvador/BA)

– Reorganizar as esperas de modo a separar o fluxo e a permanência dos usuários que apresentam sintomas/suspeita daqueles que não apresentam. Se possível, organizar uma espera ao ar livre ou em área com ventilação natural (Laís de Matos Souza, arquiteta e urbanista, Salvador/BA)

Chingotte cita ainda como baliza para os hospitais de campanha – que, segundo o arquiteto, não têm um tamanho recorrente já que variam bastante a região de implantação, a demanda (quantitativa) e o espaço ou o terreno disponibilizado para a montagem – a NT 06 da Rede Ebserh  (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, vinculada ao Ministério da Educação e responsável pela operação de um conjunto de 40 hospitais universitários federais no país), esta sim contemplando, entre outros, sugestões para a disposição dos ambientes. Não por acaso, em 31 de março passado o portal do CAU/BR noticiava a abertura da contratação, pela empresa, de 100 arquitetos e engenheiros.

“Hoje, para a montagem dos hospitais de campanha realizados pela Secretaria da Saúde do Governo do Estado de São Paulo, exigimos o atendimento das recomendações da Anvisa, tanto no espaço físico quanto nas instalações”, depõe Chingotte. Da sua experiência acumulada com a pandemia do coronavírus, há as máximas de se levar em conta os riscos de infecção e contaminação – analisados pelo departamento de arquitetura da secretaria juntamente com a equipe médica – sem abrir mão do melhor aproveitamento possível do espaço e a criticidade do assunto climatização. “O ideal é um sistema com no mínimo 12 trocas de ar/hora além da filtragem. Feito dessa maneira, por exemplo, consideramos que o Ibirapuera é um hospital classificado como uma grande unidade de isolamento contendo 100% do ar expurgado com filtragem e pressão negativa”, nos explica o arquiteto, que assinala ainda que costumam ser empregados materiais comuns em eventos, como tendas em lona antichama, divisórias do tipo octanorm (painéis TS, de laminado melamínico estrutural) e piso em manta sobre piso elevado. 

Os hospitais de campanha que estão sendo montados pelas prefeituras, governos e a nação – 108, contabilizava o jornal Estado de Minas em 24 de abril – são planejados por equipes multidisciplinares e não raro há arquitetos internamente nos órgãos de saúde, como é o caso de Chingotte, mas sem dúvida há espaço potencial para a colaboração mais ampla da classe, tal como preconizado por Messina e Rivas. “O contato direto com governos e prefeituras, contudo, é muito limitado. As entidades da arquitetura ainda podem fazer alguma chamada ou frente de ação emergencial que facilite a comunicação entre as instituições. Se existisse maior participação dos arquitetos nesse processo poderia haver soluções mais variadas”, reflete Rodrigo Messina, que complementa: “no estudo que fizemos para o governo [de São Paulo], conseguimos aumentar o número de leitos em 70%, com tempo de montagem igual e custo mais baixo ou similar ao convencional”.  Ao que responde Chingotte, questionado sobre a viabilidade da solução em mezanino: “é uma proposta factível. Recebemos o portfólio do Messinarivas e nos interessamos pelo trabalho pois a ideia de uma implantação em ‘mezanino’ nos dobraria a quantidade de leitos. Chegamos a fazer o estudo de uma UTI em um grande salão fechado que ficou ótimo, atingindo a quantidade de leitos necessária na região. Porém o sistema de climatização disponível no local – de 5 trocas de ar/hora – não atendia às recomendações da Anvisa e os custos para a sua adaptação, entre outras questões, inviabilizaram o projeto”.

 

 

A projeção da evolução dos casos de coronavírus no Brasil é preocupante, o que deve aumentar a demanda por hospitais de campanha e a reabertura ou a reformulação de equipamentos existentes. Alguns agentes estão ganhando protagonismo nesse momento, como as empresas especializadas na montagem de estruturas temporárias para eventos. É o caso da V3A que, no Rio de Janeiro, venceu concorrência aberta pela Rede D’Or para a criação, com apoio da iniciativa privada, de dois hospitais de campanha na capital carioca: o primeiro no Leblon, a unidade Lagoa-Barra, e o segundo em Jacarepaguá, a unidade Parque dos Atletas, ambas destinadas ao atendimento público e somando 400 leitos (150 de UTI e 250 de internação). O arquiteto Marcos Jochimek, sócio-diretor da empresa, relata que estava em andamento o processo de capacitação da V3A para a implantação de hospitais de campanha quando surgiu a oportunidade de participar do projeto do Leblon. Observando experiências internacionais, ele montou uma equipe multidisciplinar composta por arquitetos, engenheiros e médicos infectologistas, entre outros, a fim de reunir conhecimento sobre o assunto e adaptar técnicas construtivas habitualmente utilizadas em seus projetos. Processo em que teve destaque a mentoria do arquiteto Flavio Kelner, da RAF Arquitetura, assinala Jochimek, que compartilhou a sua longa experiência na área da arquitetura hospitalar.

Ainda que se considerasse satisfatoriamente preparado para a empreitada e ciente da capacidade da indústria nacional da construção em atender a demanda – legado da experiência adquirida com os eventos mundiais esportivos ocorridos no país recentemente, analisa o arquiteto – Jochimek, contudo, confessa que nem ele nem o próprio contratante tinham clareza do que esperar da concorrência do Leblon, realizada no modelo técnica e preço. “Foi uma novidade para todos os envolvidos pois não havia um modelo a seguir, tampouco certezas sobre certo e errado. Um hospital de campanha é um equipamento de altíssima complexidade técnica, grande escala e prazo extremamente enxuto de execução”, ele relata, alertando para o fato de que após escassos 15 dias de montagem a unidade Lagoa-Barra estava pronta para entrar em operação. Dentre as incertezas envolvidas no processo – compartilhadas pelos arquitetos da RAF que, no seu depoimento para a PROJETO, salientaram que nem mesmo a sua experiência de 30 anos no setor dá a eles o controle sobre o tema pois, “das especificidades envolvidas, um hospital de campanha para o tratamento do coronavírus difere até mesmo daquele para uma guerra ou catástrofe; os seus espaços tem que ser bem definidos, esquecendo o que fazemos em um hospital normal” – , um dos sócios da V3A e responsável pelo acompanhamento da obra, o arquiteto Alexandre Moreira, contraiu a doença mas, felizmente, já está curado.

Questionado sobre em que aspecto a modularidade construtiva recorrente na arquitetura efêmera não atende os requisitos dos hospitais de campanha, Jochimek cita, por exemplo, a questão do controle da pressão do ar climatizado. Há antecâmaras que fazem a passagem de um ambiente com pressão negativa (quando é retirada parcela do ar) para outro de pressão positiva (quando é injetado ar, filtrado, a exemplo do ocorre nas salas cirúrgicas) e, para tanto, a estanqueidade é requisito fundamental. Também a garantia da qualidade do ar é um gargalo, tendo-se em vista os padrões internacionais e da Anvisa. E a equipe da RAF amplia a análise, refletindo sobre o futuro da arquitetura hospitalar: “toda essa questão nos faz pensar como projetaremos os futuros hospitais: além das conhecidas normas, necessidades e exigências, temos que buscar  descobrir e iluminar cada vez mais as próximas décadas. O ‘novo normal’ como se tem falado, trará uma nova arquitetura para os futuros espaços”.

Entre um estudo arquitetônico e a efetivação a contento de um hospital de campanha existe um longo percurso de desenvolvimento do projeto, reconhecem Rodrigo Messina e Francisco Rivas, prejudicado pelo escasso tempo disponível em situações críticas. Mas, como aponta Rivas: “não podemos nos esquecer de que a crise pela qual estamos passando envolve ações multidisciplinares e interinstitucionais. Agora é importante fortalecer e consolidar  essas relações para que no futuro as ‘soluções’ de emergência não sejam necessárias”.