Nas matérias de Perfil da revista PROJETO, procuramos identificar momentos e aspectos relevantes das trajetórias dos escritórios a fim de melhor retratar os seus momentos presentes – seria esta também uma forma de vislumbrar possíveis futuros? A estrutura organizacional (se um escritório convencional ou um coletivo de arquitetos), o processo criativo, recorrências e excessões das produções, pontos de virada, trabalhos correlatos, obras marcantes, assim, interagem em uma espécie de quebra-cabeças a que, afinal, damos o nome de Perfil. Em conjunto, os perfis da PROJETO são um apanhado de práticas arquitetônicas brasileiras contemporâneas.
No caso do escritório Terra e Tuma, criado em São Paulo em 2006 por Danilo Terra e Pedro Tuma, uma autoanálise já havia sido feita quando, entre 2019 e 2020, o quarteto de sócios – aí inclusas as arquitetas Fernanda Sakano e Juliana Terra – concebeu a mostra Cópia Sinvergüenza, inaugurada em março de 2020 na galeria de arquitetura LIGA, na Cidade do México. Antes, os brasileiros do Tacoa Arquitetos e do Vão + Marina Canhadas, respectivamente em 2015 e 2016, tiveram exposições a seu respeito realizadas no local. A total liberdade para idealizar a mostra, relatam os arquitetos do Terra e Tuma, foi oportunidade “para refletirmos sobre a nossa produção” (Fernanda Sakano) e, “olhando para trás, assentar essas coisas dentro do escritório” (Pedro Tuma).
Por “essas coisas”, entenda-se, a grosso modo, a concepção de casas de pequeno ou médio porte, inseridas em terrenos restritos e onde as reincidências – de materiais, por exemplo, como os blocos de concreto – falam do aperfeiçoamento ou experimentação de princípios de projeto e, assim, ao entendimento de que “a arquitetura é um ofício” (Danilo Terra). O recorte da mostra na LIGA foi o residencial, com a mais remota das casas concebida em 2011 (Maracanã/SP), mas seu significado extrapolava a escolha: “Já vínhamos falando contra a doutrina do inédito nas palestras. A LIGA organizou nossas ideias”, depõe Juliana Terra.
Copia Sinvergüenza foi simbolicamente a declaração dos sócios do Terra e Tuma da sua decisão de se dedicarem à arquiteturas para serem construídas, algo aparentemente óbvio ou banal mas que foi um caminho que resolveram adotar anos antes, quando o escritório estava a pleno vapor por causa do desenvolvimento de grandes projetos públicos que, no entanto, jamais vieram a ser construídos. Em 2011, após cinco anos da fundação da empresa, o estudo elaborado pela equipe esteve entre os 40 vencedores do concurso público vinculado ao programa Morar Carioca, de habitação e urbanização de favelas do Rio de Janeiro, promovido pela prefeitura local junto com o Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento do Rio de Janeiro (IAB/RJ). Na esteira da realização das Olimpíadas de 2016, a ideia era qualificar urbanisticamente e ampliar a oferta de moradias de interesse social em 54 comunidades da cidade. Com a conquista, o Terra e Tuma abriu uma filial no Rio de Janeiro e buscou parcerias em São Paulo para desenvolver o trabalho – o SIAA, de Cesar Shundi Iwamizu. Quase simultaneamente, na capital paulista, novamente o escritório foi um dos vencedores de outro concurso público de habitação social conjugada à urbanização/requalificação urbana: o Renova São Paulo, promovido pela Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) e organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).
Diferentemente do Rio de Janeiro, aonde a designação da área de projeto (no Realengo) não fazia parte do concurso, no Renova, os arquitetos escolheram o lugar do trabalho e efetivamente foram contratados para desenvolvê-lo até a etapa de projeto básico para a licitação das obras, o que demandou cinco anos de trabalho. Foram numerosos os levantamentos de dados no local, intensa a interface com os moradores e com os órgãos públicos envolvidos com o projeto, que resistiu a duas trocas de prefeitura mas, ainda assim, não saiu do papel. Nas pausas do trabalho, aproveitando a estrutura montada no escritório para atender as suas demandas – Fernanda Sakano ingressou na equipe nesse contexto -, os arquitetos buscaram novas parcerias e frentes de atuação como, por exemplo, as licitações para intervenções em escolas públicas paulistas e a participação em novos concursos. SIAA e Apiacás estão entre os escritórios parceiros nestas jornadas.
A meia década de intensa produção mas escassa realização – “de amadurecimento da empresa mas de muito papel sendo produzido no escritório, com pouca obra acontecendo de fato”, verbaliza Danilo -, fez com que os arquitetos decidissem reorganizar a empresa, diminuindo a equipe e mudando o foco dos projetos. “Arquiteto não é um vendedor de projeto, de folhas que vão para a obra. Vamos olhar para o que de fato vai ser construído”, eles resumem o desejo de transformação que, involuntariamente, coincidiu com a grande repercussão que teve, no Brasil e exterior, a conclusão em 2015 da obra de uma casa paulistana, cuja concepção iniciara em 2011: a Casa Vila Matilde . “Quando a notícia estourou [em 2016], já tínhamos diminuído de tamanho. Estávamos nós três [Juliana Terra ainda não havia ingressado na sociedade] e mais uma arquiteta no escritório”, relembra Pedro. A Casa Vila Matilde fez parte dos projetos selecionados pelos arquitetos para comporem a mostra no México porque não é exceção no escritório mas, ao contrário, desdobramento de uma lógica de projeto já presente de forma mais sistemática na Casa Maracanã, de 2011, “onde o terreno estava fadado a ser baldio”, precisa Pedro. Porém, a sua divulgação enquanto moradia popular causou “uma situação atípica”, define Danilo, demandando, por exemplo, a excessiva disponibilidade dos arquitetos para deporem sobre o projeto, tanto na mídia especializada quanto na de massa. Os sócios, então, tiveram que voltar a contratar mas, o que ilustra o estranho da situação, não arquitetos e, sim, secretária e assessor de comunicação. “Em um certo momento nem sabíamos mais como responder aos chamados das emissoras de televisão”, cita Fernanda.
Do ponto de vista do retorno da fama projeto para o escritório, por um lado houve “um assédio por coisas descabidas, como se a casa tivesse uma fórmula replicável”, relata Danilo. Mas, por outro, “passou a haver a procura de pessoas que entenderam a nossa capacidade de lidar com questões pontuais, presentes na Vila Matilde”, complementa Pedro, assinalando o pertencimento daquele projeto a “um laboratório que continua a dar fruto no escritório”. O fato é que, depois da Vila Matilde, consolidou-se a formação atual do Terra e Tuma, de uma sociedade de quatro arquitetos, efetivada com a formalização de tal condição de Fernanda Sakano e do ingresso de Juliana Terra em 2017 na equipe, depois de ter acompanhado de perto as realizações do escritório desde o início, em 2006.
Todas as tarefas são desempenhadas pelo experiente quarteto, detalha Pedro, tanto as de projeto – desde a criação até o detalhamento arquitetônico – quanto as administrativas e de interface com os clientes e obras. Pouco braço para bastante serviço – há três obras concluídas, aguardando para serem fotografadas, além de mais de uma dezena de projetos e obras em desenvolvimento, algumas das quais em parceria com terceiros e outras ainda como projetos de exceção dentro do escritório – “mais contundentes”, define Pedro. “Não existe o projeto de cada um, todo mundo está ao par de tudo. Compartilhamos as nossas telas em uma televisão para todos verem o que estamos desenhando, mesmo no projeto executivo. Estamos juntos porque queremos, e isso só faz sentido porque compartilhamos, não dividimos o trabalho. Conforme a carreira avança, notamos que a arquitetura é a primeira coisa que sai da frente dos escritórios. Em vez de desenhar, os arquitetos começam a atuar como gerenciadores – de agenda, de e-mail, de telefone… Não é isso o que queremos”, defende Danilo.
A lousa na sala de reunião do escritório na Pompeia é a agenda que organiza a semana e prancheta coletiva para a imersão dos arquitetos nos estudos preliminares dos projetos. “Tem croqui, tem tabela de área, de índices urbanísticos, de valor de venda, de tamanhos dos apartamentos. Procuramos enxergar os projetos também pelo lado do empreendedor”, aprofunda Pedro, dando indícios dos tipos de trabalho atualmente em desenvolvimento no escritório: casas, sempre, mas também edifícios residenciais e alguns projetos institucionais. Em 2019, em meio aos preparativos para a mostra no México, os sócios já dirigiam o escritório do seu desejo: pequeno e eficiente, inclusive pelo modo como se posicionam frente aos demais agentes dos projetos. Igualmente, o Terra e Tuma já havia ingressado na seara dos empreendimentos imobiliários residenciais de pequeno porte – foi naquele ano que teve início o projeto do edifício Tico RV e, antes ainda, de outro prédio residencial atualmente em implantação no sul do país.
“Precisa ser capaz para fazer algo diferente, e a capacidade vem do conhecimento. Nosso ingresso nesse segmento [mercado imobiliário] veio do contato com incorporadores atentos à arquitetura e à oportunidades não óbvias de construção na cidade. Acredito que eles se sentiram seguros ao perceberem a nossa experiência, desde sempre, de atuar na cidade e entender as regras urbanas e do próprio mercado imobiliário. Sabemos que o incorporador precisa ter lucro, obter o melhor aproveitamento do terreno. Sabemos lidar com isso através na nossa arquitetura. O Rafael [Fiorotto] já tinha um desenho para o Tico RV, com dez unidades” (Danilo Terra), mas “apresentamos para ele a proposta de um projeto com 12 unidades” (Pedro Tuma). Ao mencionar o tamanho do lote do edifício, de 10 por 20 metros, como possivelmente o de uma casa também, Pedro convoca o projeto da Casa Vila Matilde, costurando conceitualmente as realizações do Terra e Tuma.
No início, o escritório ocupou a sala que ele havia alugado com casal de amigos em pequeno prédio da Rua General Jardim, em São Paulo, ainda estudante de arquitetura da Universidade Mackenzie – na qual se graduou em 2004. Danilo Terra e Juliana Terra também estudaram no Mackenzie, graduando-se em 2003, enquanto que Fernanda Sakano concluiu em 2010 o estudo no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU). Na sala, Pedro desenvolvia seus projetos de marcenaria e a organização dos acompanhamentos de reformas, iniciados informalmente durante a graduação. Depois de formado, “veio a oportunidade de projetar a casa de uma conhecida em Brotas. Ela tinha o terreno e dinheiro para construir e eu, então, chamei a Ju [Juliana Terra, com quem havia estudado no Mackenzie] porque precisava me organizar. Eu tinha muito trabalho. A Ju me indicou para o Danilo, que estava saindo do Republica [Arquitetura], e nós três fizemos aquele projeto. Depois veio outro e tudo foi acontecendo”, narra Pedro.
Frente a tal fluência mencionada pelo arquiteto, identificar fases facilita a tarefa de contarmos as histórias dos escritórios. Mas, no caso do Terra e Tuma, a sensação é mais de continuidade do que de inflexões, e isso, acredito, é mérito da coerência dos seus projetos, como já anunciado por eles mesmos em Cópia Sinvergüenza. Além de questões circunstanciais, assim, o momento atual do escritório – a sua forma de organização e naturezas dos trabalhos – costura experiências advindas de uma série de projetos aparentemente desconexos entre si, os públicos e os das casas; contextualizados em dinâmicas distintas, é verdade, mas enfrentados com similar pragmatismo pelos arquitetos. Em breve, mostraremos aqui na PROJETO as recentes obras do Terra e Tuma, mas é bonito pensar que um dos projetos em particular – a parceria com o escritório Rosenbaum em uma nova etapa de desenvolvimento da Fazenda Canuanã, em Formoso do Araguaia (TO), para a Fundação Bradesco – é, de certa maneira, a primeira materialização do seu conhecimento adquirido com a elaboração de planos urbanos (ou coletivos), mas não só. É também o campo de prova de habilidades de gerenciamento, posicionamento profissional, excelência, que vêm sendo acumuladas no escritório. Contaremos essa história em detalhes na nossa próxima edição impressa. (Por Evelise Grunow)
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