Paulo Mendes da Rocha: Casa Gerber, Angra dos Reis, RJ

Publicamos nesta edição uma matéria diferente do usual em PROJETOdesign. Se a nossa identidade é a excelência e a atualidade da arquitetura brasileira, ou seja, levar ao leitor projetos e obras recentes e de elevada qualidade, vale, neste caso, abrir uma exceção temporal para apresentar uma residência que há pouco completou quatro décadas de existência. O seu autor é Paulo Mendes da Rocha e o local de inserção é o Rio de Janeiro, na bela costa de Angra dos Reis.

O texto do historiador Daniele Pisani centra esforços na análise do diálogo estabelecido pelo projeto  – e, no geral, pela arquitetura de Mendes da Rocha – entre a construção e a natureza, partindo do levantamento de material de época (fotos e desenhos pré-executivos) pertencente aos arquivos do arquiteto e dos proprietários, assim como da vivência da casa por Pisani. Fotos de Leonardo Finotti dão suporte à reportagem, atestando a boa saúde da edificação mesmo na iminência de passar por trabalhos de requalificação, para sanar desgastes normais de uso e da ação da maresia. O  leitor tem, assim, a oportunidade de conhecer uma casa de 40 anos e inédita, que se chegou a acreditar demolida por causa da quase ausência de registros no escritório do arquiteto, mas que atesta o vigor e a consistência da carreira de Mendes da Rocha.

Quando, há alguns anos, comecei a estudar a arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, um dos principais problemas que enfrentei foi o de elaborar um catálogo da sua obra o mais completo possível. Tal necessidade se tornou mais aguda quando ficou evidente para mim que, enquanto as publicações continuavam a mostrar uma restrita seleção de obras, os tubos e gavetas do seu estúdio atestavam a existência de uma produção de riqueza e variedade incomensuravelmente superiores. Eu não acreditava, contudo, que encontraria obras efetivamente construídas, ainda existentes e inéditas, como é o caso da residência que publicamos agora. No escritório de Mendes da Rocha, de tal casa se conservam poucos registros: há apenas fotos de época, algumas das quais publicadas pela primeira vez na minha monografia (leia entrevista com Pisani em PROJETOdesign 405, novembro de 2013)¹.

Trata-se da única obra construída de Mendes da Rocha no estado do Rio de Janeiro e data do biênio 1973-1974. Quem a encomendou ao arquiteto foi Ignácio Gerber, engenheiro que, naquele tempo, era sócio de um dos principais estúdios de análise do solo e fundação do Brasil, a Consultrix Engenheiros Associados (a quem, não por acaso, se deve a consultoria de obras do calibre do Edifício Itália, Conjunto Nacional e Masp). Gerber costumava trabalhar com o calculista Mario Franco, de quem tanto a Consultrix quanto Mendes da Rocha eram usuais parceiros – no caso do arquiteto, as colaborações foram particularmente frequentes naqueles anos, em obras como a Casa Dalton Macedo Soares, o Montepio Municipal e o MAC/USP, este último tendo contado com a participação do próprio Ignácio Gerber, que depois enveredou pela carreira de psicanalista: é a ele que se deve a publicação de esboços de Mendes da Rocha em um número da Ide, a revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

A casa se encontra em Itapirapuã, a alguns quilômetros de Angra dos Reis, localidade da costa carioca cujo destino foi transformar-se no porto da primeira indústria siderúrgica brasileira, a Companhia Siderúrgica Nacional de Volta Redonda, em um grande cais da Petrobrás e na sede de uma central nuclear. O fato de a casa se encontrar no estado do Rio de Janeiro, de qualquer modo, não tem relação com uma clientela carioca. Os contratantes de Mendes da Rocha eram paulistas. E assim, além do calculista, também o desenho dos interiores foi do paulista Silvio Oppenheim, artista e arquiteto formado na FAU/USP em 1965, atuante nos escritórios de Croce, Aflalo e Gasperini e de Jacob M. Ruchti e, a partir de 1970, titular do seu próprio estúdio. A casa se ergue sobre uma grande rocha, a poucos metros do mar. O acesso ocorre pela descida em uma trilha sinuosa, imersa em farta vegetação. Em consequência, nos encontramos a poucos metros da residência sem ao menos nos darmos conta da sua presença. Quase sem querer, já se está no seu interior. A única variante no percurso que conduz ao interior da casa mesmo antes que seja possível vê-la consiste na subida de alguns degraus para acessar a cobertura. A julgar pelo que se vê do alto, os quatro pilares que sustentam os dois pares de vigas invertidas estão dispostos a pequena distância um do outro, produzindo assim grandes balanços.

Como o usual nas casas de Mendes da Rocha, a cobertura é inteiramente preenchida por uma superfície de água, para otimizar a resistência do concreto e garantir tanto o isolamento térmico quanto a perfeita impermeabilização. Nesta casa de férias, a cobertura subdividida em nove porções dialoga com a extensão marinha, pontuada por pequenas ilhas: quase demonstrativamente, de um lado temos a água – diria o arquiteto – como “fenômeno”, empregada por sua própria virtude, e de outro como puro e simples elemento da “paisagem”.Despojada, quase rude como muitas das casas de férias de Mendes da Rocha, há uma organização planimétrica o mais clara e simples possível. À  direita de quem entra se encontram os quartos e banheiros, enquanto o restante da casa não possui divisões, com a parcial exceção de um bloco que abriga a cozinha, no qual é inserida a lareira. Em consequência de um fundo assim neutro, algumas presenças se distinguem nitidamente. A  primeira é uma enorme mesa de mais de oito metros de comprimento – o foco da vida que se desenvolve na casa. A segunda são os quatro pilares redondos de cimento armado dispostos a curta distância entre si, de modo a liberar o ambiente principal da sua interferência; concentradas as verticais, as horizontais do piso e do teto, reforçadas por uma terceira e uma quarta, que são o parapeito e o brise que percorrem a fachada lateral, terminam por se configurar nos elementos dominantes. A terceira e principal presença deste espaço é, contudo, a da paisagem, recortada pela fenêtre en longeur disposta ao lado da grande mesa mas deixada penetrar sem nenhuma moldura pelo lado oposto, onde porém fica mantida a distância pela posição dos pilares de modo tal a dificultar o rápido atravessamento da casa e, consequentemente, o acesso à frente aberta para o entorno.

Também a parede que separa o bloco dos quartos e banheiros impede quase totalmente a vista da paisagem. Até neste caso se trata, porém, de um artifício retórico: uma vez transpostas suas portas, nos encontramos diante de uma parede totalmente envidraçada, sem nem mesmo o caixilho, de onde não se vê senão a superfície do mar pontuada por ilhas e embarcações. A clausura, aqui, acaba suscitando total imersão na paisagem.A medida do diálogo que a casa estabelece com a natureza, no entanto, é dada pelos quatro pilares que, graças a um balanço respeitável, sustentam a laje de cobertura. Para perceber esse diálogo deve-se porém deixar-se seduzir por um convite do arquiteto, que nos engana propositalmente. O bloco dos quartos é interrompido por uma estreita fissura, pela qual penetra um facho de luz e de onde parte uma escada em declive. A  existência mesma de um plano inferior em uma casa como esta (e no geral nas casas de férias de Mendes da Rocha) é por si insólita.

Ao  fim desta escada estreita se espera, de certo modo, encontrar um ambiente de serviço. Mas ao contrário, descendo a escada, nos achamos de frente a um muro de pedra quase cego, com dois ambientes compridos que se estendem para a direita e para a esquerda, abertos nas extremidades para o exterior e que, à contraluz, acabam por ficar invisíveis em quase toda a sua extensão. Enquanto nos esforçamos para focar a vista e enfim tocamos o pé no chão, percebemos algo que resta ainda incompreensível: ao lado da escada não há uma parede, em pedra ou rebocada que seja, mas o que se vê é a rocha sobre a qual está pousada a casa. A rocha como ela é, bruta. É óbvio que vêm à mente outras casas construídas sobre rochas que atravessam o piso da construção – a Fallingwater, de Wright, sobretudo. Que esta fosse a referência para Mendes da Rocha é, porém, algo difícil de dizer; sem dúvida ele não teve pelo arquiteto americano a mesma admiração que o jovem Artigas.

De qualquer modo, o afloramento da rocha em sua configuração original revela a função que ela possui na lógica da Casa Gerber apenas quando se percebe que a pedra, ela mesma, é onde se apoiam os quatros pilares que consistem na estrutura da casa. Aquilo que à primeira vista aparece como natural é agora, ao mesmo tempo, a base sobre a qual repousa o artifício criado pelo homem. Ao contrário de uma regurgitação nostálgica, a exibição da rocha que funciona como suporte da estrutura de concreto armado (construída para um engenheiro calculista do solo e fundações) mostra o descompasso entre aquela presença e a inteligência da intervenção humana. Entre natureza e artifício, entre natureza e ação humana a relação se revela complexa. A casa se abre para a paisagem perturbando-a o menos possível. Mas não por isso aspira a diluir-se na paisagem. Afirma com orgulho sua própria natureza diversa: e em particular a inteligência que contém. Uma vez imerso na sua inesperada víscera se compreende, assim, a sofisticada relação que a casa estabelece com o entorno. E se neste momento se retorna ao andar principal, tem-se os instrumentos para perceber as retomadas desse mesmo discurso. Um detalhe resulta particularmente emblemático.

Na  Casa das Canoas, de Oscar Niemeyer, externamente ao vidro que circunda o piso superior mas em parte protegido pela cobertura, há uma rocha; trata-se de uma das várias presenças dispersas que o arquiteto carioca demonstra saber unir em uma síntese superior. Na Casa Gerber encontramos um detalhe que, à primeira vista, parece retomar esta solução: um pequeno pedaço de rocha, ramificação daquela sobre a qual se assenta a casa, aflora sobre o nível do chão também próximo da vidraça principal. Em vez de incluí-la na casa ou deixá-la fora como um objet trouvé, Mendes da Rocha a corta, porém, com o vidro.Aí está um detalhe demonstrativo. O aflorar da pedra, evocando a inevitável fricção entre a forma irregular da rocha e o plano perfeitamente horizontal da casa, atesta a consciência do arquiteto de que a natureza não pode ser mantida intocada: a arquitetura é condenada a construir um mundo que não é dado na natureza. O corte da rocha pela vidraça não é, assim, senão um momento inaugural, um dos inumeráveis inícios de um processo sem fim. (Por Daniele Pisani)

¹ A única cópia de três das pranchas de uma versão intermediária do projeto está em mãos dos proprietários da casa. Por sua generosa colaboração, agradecemos a Raquel e Ignácio Gerber.

 

Publicada originalmente na revista PROJETO 423 – Junho 2015

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