Entrevista Joan Villà: O ensino de arquitetura e a situação dos projetos para a habitação social no Brasil

O ensino de arquitetura, a atual situação dos projetos para a habitação social no Brasil e a comparação entre as preparações feitas por Barcelona e pelo Rio de Janeiro, no âmbito arquitetônico, para sediar os Jogos Olímpicos são alguns dos temas tratados nesta entrevista. Joan Villà fala ainda sobre o tratamento de “supérfluo” que os governos têm dado à arquitetura em seus programas habitacionais.

O ensino de arquitetura, a atual situação dos projetos para a habitação social no Brasil e a comparação entre as preparações feitas por Barcelona e pelo Rio de Janeiro, no âmbito arquitetônico, para sediar os Jogos Olímpicos são alguns dos temas tratados nesta entrevista. Joan Villà fala ainda sobre o tratamento de “supérfluo” que os governos têm dado à arquitetura em seus programas habitacionais.
O senhor leciona em duas faculdades. Como está a situação do ensino de arquitetura atualmente?
Percebo, no Mackenzie e na Belas Artes, que o interesse dos alunos vem crescendo. Eles são mais dedicados e informados, mas talvez menos críticos. No Mackenzie eu continuo no trabalho final de graduação e os resultados são positivos. Na Belas Artes, pedi para o coordenador me colocar no primeiro ano.
Por quê?
Com a idade, temos a pretensão de ter coisas concretas a dizer, de forma mais clara e precisa. E eu já estava havia muitos anos com os alunos no final do curso e não entendia alguns mistérios.
Quais mistérios?
Por exemplo: os alunos chegam ao final do curso projetando em planta. Fui para o primeiro ano como uma espécie de ensaio, para ver como eles ingressavam no curso.
E qual é o problema de começar projetando em planta?
O problema é que eles desenvolvem o projeto somente desenhando a planta. Ainda é a maneira de agir da quase totalidade dos alunos. Só quando acham que a planta está razoável – e na maioria das vezes está longe disso – é que começam a fazer, rapidamente, os cortes. Mas cortes são uma decorrência da planta, com um eixo a mais. As fachadas são criadas dois ou três dias antes da plotagem.
Os programas de 3D, como Sketchup, não são usados pelos alunos?
Mas eles só conseguem criar volumes com o Sketchup a partir da planta. Ou seja, o próprio programa induz a isso.
Eu me referia ao uso do programa para aferir a volumetria com mais facilidade.
Mas isso está na cabeça de poucos. Estamos fazendo experiências interessantes na Belas Artes no sentido de trabalhar diretamente a partir do volume ou do corte. Isso também começou a ocorrer no Mackenzie, onde é mais difícil mudar, pois as coisas estão mais instituídas, mas essa forma de crise está sendo percebida por muitos professores. Os professores de projeto não questionam esse processo pois reproduzem em classe formas tradicionais de trabalho de escritório. Ou seja, dá-se grande importância ao programa de necessidades, que gera um diagrama bidimensional, transformado na planta. Eu comecei a dizer que todo leigo faz plantas: organiza-se o sítio, o consultório, o galpão industrial. E é um pouco absurdo imaginar que os arquitetos tenham que fazer o mesmo percurso do leigo, só respondendo a programas e fluxos. Não podemos acreditar que essa resposta vai se transformar em arquitetura por obra e graça do Espírito Santo. E no primeiro ano tenho visto bons resultados do conjunto dos alunos, ultrapassando os famosos 10% de interessados que sempre houve.
Qual é o método?
Não chega a ser um método. Em primeiro lugar, é o reconhecimento de que é do leigo fazer plantas e por isso todos continuam a fazê-las. Como existe uma recusa de se ver como leigo, essa percepção se torna um elemento crítico.
Como se começa um projeto, então?
A primeira coisa é ter bem claro a força da geometria na história. Ela foi responsável pela organização dos mais variados espaços, desde a taba indígena até o tratado de Tordesilhas. A sociedade sempre a usou no tratamento da propriedade, dos caminhos, da distribuição das águas. A questão importante é se preocupar com o projeto do vazio. O aluno pensa: “Se estão me pedindo um programa e um objeto construído, como vou projetar o vazio?”. Aí vem a demonstração. Hoje, nas aulas, é possível através de um data show e um computador entrar no Google Earth e observar, por exemplo, a Cidade Proibida, em Pequim. Projetar tendo o vazio como foco não é muito frequente, mas Oriol Bohigas, por exemplo, já escreveu a respeito. Em um texto publicado no livro sobre a Vila Olímpica, ele diz que “a arquitetura ratifica aquilo que o espaço público previamente estabeleceu”. Isso vem do pensamento de Aldo Rossi. Ou seja, o grande gerador dos espaços urbanos e dos edifícios é o desenho do vazio.
E qual é o resultado?
A arquitetura que surge a partir de uma preocupação desse tipo deixa de ser clássica, entendendo por clássica o objeto relativamente isolado e distante da cidade, ainda que dentro dela. Quando se pensa no vazio há a possibilidade de discutir questões clássicas por outro viés. O que é o construído e o que é o não-construído? A relação não-construído/construído coincide com a relação público/privado? O vazio pode ser um espaço natural? Os alunos entendem isso e passam a ter uma relação com o projeto que não se pauta somente pela singularidade do edifício.
Há quanto tempo o senhor está fazendo esse trabalho com as turmas do primeiro ano da Belas Artes?
Um ano em meio.
Então esses alunos ainda não se formaram, não podemos avaliar sua maneira de projetar.
Ainda não. Eu fui descendo na grade da Belas Artes: dava aula no nono semestre e orientando trabalhos finais de graduação. E na Belas Artes os quatro primeiros semestres são considerados básicos, e projeto de edifício e desenho de cidade são ministrados em conjunto. Minha primeira descida foi para o quarto semestre, e estabeleci que ninguém faria plantas. Para facilitar o trabalho dos alunos, não existia programa, só conceitos. Pegamos textos de Ignasi de Solà-Morales e discutimos com os esudantes.
A arquitetura que se preocupa com o vazio deixa de ser clássica, entendendo-se por clássica o objeto isolado e distante da cidade, ainda que dentro dela. Os alunos que entendem isso não se pautam só pela singularidade do edifício.
São textos difíceis, não?
Sim, mas centramos a discussão nos tópicos que falam dos terrenos vagos, dos contêineres e dos fluxos, dando exemplos na nossa cidade. Pela resposta dos alunos, percebo que algo aconteceu. E isso também começa a ocorrer com alunos do último ano do Mackenzie. Há quatro anos, os projetos de TFG do Mackenzie têm obrigatoriamente que trabalhar a relação arquitetura/construção, com desenhos específicos. Não é propriamente um detalhamento, mas, por exemplo, desenhos em escala 1:20 ou 1:25. Neles começa o entendimento de que uma coisa é a estrutura e outra é a estrutura auxiliar que sustenta o caixilho, a claraboia etc. Em geral, os alunos que chegam ao décimo semestre ficaram quatro anos projetando paredes de 20 centímetros, onde supõem que serão embutidas todas as instalações e a estrutura. Por isso, pouco sabem a respeito de temas contemporâneos de arquitetura e construção, como fachadas penduradas.
Não veem isso em tecnologia?
Não. Nas escolas da América Latina, por influência da Espanha, não existe tecnologia: existe construção arquitetônica. E a tecnologia que é dada no Brasil continua presa às questões da escola de engenharia do século 19: resistência dos materiais, conforto térmico etc. São categorias físicas em nenhum momento associadas à criação e à poética da arquitetura. E os alunos começam a descobrir que essa poética é relacionada à construção também.
Para mudar seria preciso professores de tecnologia que entendam isso?
E também professores de projeto que entendam isso.
No primeiro mandato de Lula, Olívio Dutra apareceu na Globo, já como ministro das Cidades. A filmagem foi realizada na frente de um conjunto habitacional da pior qualidade, em Brasília. E ele mostrou aquilo como exemplo do que iam fazer.
Os alunos de hoje leem mais que os de outras gerações?
Não. Quando eu estudei no Mackenzie, só os “comunas” é que estavam interessados em arquitetura. Ouvíamos repetidas vezes que Lenin dizia que os melhores filhos da classe seriam os lutadores que levariam o país para a frente. Achava-se, nos anos 1960, que estávamos na iminência de uma grande mudança no país e precisávamos ter arquitetos em todos os estamentos do Estado, para fazer centenas de postos de saúdes, hospitais, escolas.
Mas alguma coisa foi feita.
Sim, e o panorama da arquitetura era um pouco melhor. A diferença, hoje, é que no TFG o aluno escolhe o tema e o orientador. Há semestres em que o tema habitação como forma de requalificação urbana significa 30% ou 40% do total de trabalhos. E isso não é por causa do momento político ou do programa federal. Pode ser um pouco de idealismo. Há dez anos, no TFG apareciam academias de ginástica, os mais cultos faziam museus.
Isso não é um rescaldo do quarto ano do curso, em que se passa um semestre inteiro falando de habitação como requalificação da cidade?
Isso pode ser uma influência, mas há um nível de informação sobre habitação vindo das revistas e da internet que antes não existia. O ícone não é mais o Pedregulho ou a Cecap de Guarulhos.
São os espanhóis?
Sim, mas também os chilenos e colombianos. Parte dos alunos conhece com certa profundidade o Elemental. Por exemplo: há um trabalho que procurou ampliar os conjuntos habitacionais de São Paulo de 20 anos. Essa inquietação passa pela construção, mas é um fenômeno novo entre os alunos.
Falando em habitação social, como o senhor está observando a movimentação do governo federal nessa direção?
No dia da posse do primeiro mandato de Lula, Olívio Dutra apareceu na Globo, já como ministro das Cidades, para falar sobre o novo ministério. A filmagem foi realizada na frente de um conjunto habitacional da pior qualidade, em Brasília. E ele mostrou aquilo como exemplo do que iam fazer. Durante todo o primeiro mandato de Lula, os quadros técnicos do ministério eram quase todos de São Paulo. O plano deles envolveu a titulação em primeiro lugar. Ou seja, fizeram com que os moradores de favelas tivessem título de propriedade. É uma medida importante, pois sem isso nenhum banco faz um empréstimo. Em segundo lugar, estava o saneamento básico. Em nenhum momento a arquitetura transpareceu como questão básica. Há gente no ministério convencida de que a arquitetura é supérflua.
Isso não é rescaldo do pensamento de Sérgio Ferro?
Um pouco. Mas me parece que é gente que não gosta de arquitetura. A questão da titulação e do saneamento básico foram colocadas como bandeiras do ministério, que é um dos que menos conseguem gastar as verbas empenhadas. E o que vemos hoje, como produção do Estado, é quase nada. Falar em 1 milhão de casas para o Brasil não é nada tão extraordinário. O extraordinário é que faz muitos anos que o Estado brasileiro não faz nada em nenhum nível – exceção feita a São Paulo, que, graças ao ex-governador Franco Montoro, tem uma dotação orçamentária para a CDHU, que produz cerca de 40 mil unidades habitacionais por ano.
Mas eles também não gostam de arquitetura.
Também não gostam. E a prova de que a arquitetura não é valorizada é o resultado que vêm obtendo.
O senhor não acha que isso depende da existência de quadros técnicos que acreditem em mudanças e na arquitetura em si? Penso, por exemplo, em uma comparação com a FDE, ligada ao mesmo governo de São Paulo, mas que ao longo dos anos teve atuações diferenciadas.
Nunca se chegou ao nível da FDE no âmbito da habitação. Acho que esse processo começou quando João Honório passou a dirigir a FDE.
E isso se resolve algum dia?
Acho que sim. O exemplo virá de fora. Independentemente de quem ganhar a próxima eleição, talvez estejamos vivendo uma forma nova de ver o Brasil: um país com mais de 200 milhões de habitantes e com mercado interno começando a ficar forte. Isso dentro de um mundo que não é bipolar. E por isso o Brasil está começando a olhar para fora, de uma forma geral. Temos o exemplo da Colômbia, do México, do Uruguai e do Chile. A referência não é só Zaha Hadid ou o último japonês. Creio que vamos acabar tendo uma visão um pouco mais latino-americana.
Mas para isso chegar aos quadros do governo não demora muito?
O problema hoje não são só os quadros dos governos: o problema é geral, da sociedade brasileira. No período que vai de 1950 a 1970, o Brasil queria ser moderno. Agora, a sociedade quer ser rica, poderosa. E não há só aqueles que estão passando das classes D e E para a C: o número de novos-ricos é impressionante.
Não dá para um país mudar de patamar sem passar pelo novo-rico, não?
Não dá, e estamos passando por isso. Enquanto o Estado brasileiro marcou determinadas pautas – no ensino, na saúde etc. -, houve uma arquitetura encomendada por ele, que é a arquitetura feita por meus professores, a arquitetura moderna da verdade dos materiais. Imaginar que os caixilhos deste prédio [edifício em Higienópolis desenhado por Franz Heep] foram inteiramente feitos com perfil de cantoneira é inacreditável. A cidade inteira trabalhava com serralherias de fundo de quintal. Mas, apesar da precariedade dos recursos, a arquitetura tinha qualidade. Os conjuntos da década de 1930 ou 1940 revelam qualidade no desenho urbano.
A aposta habitacional do governo atual não joga a solução para a iniciativa privada, somente através do crédito?
Creio que sim. Mas duvido que 1 milhão de casas sejam feitas. O governo Lula não está fazendo nada para conseguir qualidade arquitetônica na habitação.
Se os técnicos não existem e não foram treinados, fica difícil acreditar na melhora da qualidade da habitação social, não?
Talvez os alunos que estão saindo da faculdade, quando chegarem perto dos 40 anos, tenham respostas para esses problemas. Uma novidade são os alunos com bolsa do Prouni nas universidades particulares. Eles pegam trem, metrô e ônibus. Isso é uma mudança de perfil.
Mas o senhor não nota a existência de um desejo de aburguesamento por parte dessa geração?
Não percebo isso entre os alunos de arquitetura. Mas é um dado novo: hoje, há cerca de 10% nessa situação, e alguns trabalham com muita dedicação.
O senhor estava em Barcelona quando a cidade se preparava para a Olimpíada de 1992. Podemos comparar com a situação do Rio de Janeiro?
Não há a menor condição de fazer uma comparação. Barcelona estava em processo de mudanças físicas desde 1982, quando a transição para a democracia pós-Franco começava a se consolidar. Nesse momento houve uma anistia e o partido socialista foi legalizado. Em 1980 os socialistas ganharam as eleições para a prefeitura de Barcelona e estão no poder até hoje. Desde o primeiro governo socialista houve uma cumplicidade entre o poder público e o Colégio de Arquitetos da Catalunha. Por isso, a partir de 1982 começam a ser reestudados projetos urbanos que estavam na gaveta desde a ditadura. Uma das figuras importantes desse processo foi Oriol Bohigas, que era da faculdade de arquitetura de Barcelona e, ao mesmo tempo, secretário municipal de Urbanismo. Então, quando a cidade ganhou a indicação para a Olimpíada de 1992, já havia uma administração e meia sob a mesma batuta. O grande investimento foi nos espaços públicos e na reconversão de antigos edifícios. E a população estava envolvida no processo.
E aqui nada disso aconteceu.
Não. Não houve esse preâmbulo.
Talvez se não tivesse existido a ruptura política entre Luiz Paulo Conde e César Maia…
Sim, o mesmo poderia ter acontecido se o Rio-Cidade e o Favela-Bairro tivessem perdurado. Outra coisa: Vittorio Gregotti foi convocado no final dos anos 1970 para reciclar o antigo estádio de futebol de Barcelona. Ele foi o primeiro arquiteto estrangeiro que apareceu na cidade, dando início a um processo que se acentuou na Olimpíada. Se 43 equipes espanholas participaram do projeto da Vila Olímpica, foram convocados também arquitetos da Alemanha, do Japão, da França etc. E eles incorporaram ao processo construtivo local patamares que não existiam.
Não há como comparar Rio de Janeiro e Barcelona [nos preparativos para os Jogos Olímpicos]. Quando chegou a época da Olimpíada, Barcelona tinha um projeto cultural pronto, como que dizendo: “Temos um projeto de cidade”.
Há algum exemplo marcante desse processo?
Fernando Ramos, diretor da faculdade e meu orientador, era também o parceiro de Richard Meier no projeto do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona. No final da obra, ele pediu licença na faculdade e passou a me atender no canteiro, de modo que acompanhei o final da construção. Além de trabalhar conversões simples, ele e a equipe tinham que propor a substituição de materiais e soluções do gênero. Um dia eu cheguei ao canteiro e haviam tirado todas as escoras e as fôrmas. O prédio estava ótimo e achei que fora concluído. Depois de ouvir meus elogios, Fernando Ramos me levou ao bar racão da obra e me mostrou os desenhos das fachadas que chegavam por fax. “Esse edifício vai ser revestido inteiramente com chapa de aço zincado pré-esmaltado de branco”, ele disse. Fiquei espantado com aquela solução, que me parecia de chapas de geladeira. Mas ela trouxe também questões contemporâneas, como a envoltória, a segunda fachada, o tratamento termoacústico etc. Enfim, foi um processo que trouxe para Barcelona uma nova cultura de construção e indústria. Então, quando chegou a Olimpíada, Barcelona tinha um projeto cultural pronto, como que dizendo: “Temos um projeto de cidade”. Não sei se essa é a melhor forma, mas se fosse um caminho eu diria que estamos muito longe.
Por Fernando Serapião
Publicada originalmente em PROJETODESIGN
Edição 361 Março de 2010

Joan Villà

Conteúdo exclusivo para assinantes

Por apenas R$ 6,99 mensais, você tem acesso ao conteúdo completo do acervo da revista PROJETO, com mais de 8.000 obras, projetos, entrevistas e artigos

Assine por R$ 6,99 mensaisJá sou assinante