Entrevista Jô Vasconcellos: Como transformar um centro administrativo do governo numa praça que abrigará um universo de centros culturais mineiros

As intervenções que estão em curso nas edificações da praça da Liberdade, em Belo Horizonte, e vão transformar aquela região da capital mineira num circuito cultural têm sido acompanhadas pela arquiteta Jô Vasconcellos. A relação entre Jô e a praça é, porém, mais antiga - vem do início da década de 1990, quando a arquiteta a restaurou. “A ideia é que o Circuito Cultural Praça da Liberdade se dissemine pela região”, ela conta.

As intervenções que estão em curso nas edificações da praça da Liberdade, em Belo Horizonte, e vão transformar aquela região da capital mineira num circuito cultural têm sido acompanhadas pela arquiteta Jô Vasconcellos. A relação entre Jô e a praça é, porém, mais antiga – vem do início da década de 1990, quando a arquiteta a restaurou. “A ideia é que o Circuito Cultural Praça da Liberdade se dissemine pela região”, ela conta.
Como nasceu a ideia de transformar a praça da Liberdade em circuito cultural?
A ideia conceitual vem da época de Francelino Pereira, em 1997, quando era senador, durante as comemorações do centenário de Belo Horizonte. Ele até escreveu um livro explicando as mudanças que poderiam ser feitas para transformar os prédios das secretarias em áreas culturais. Isso, porém, ficou parado até a primeira gestão do governador Aécio Neves. Acredito que, como ele tinha o propósito de implantar a cidade administrativa, aproveitou para implementar o circuito cultural ainda na sua primeira gestão. O escritório do circuito veio aqui para o Rainha da Sucata [apelido do edifício do Centro de Apoio Turístico Tancredo Neves, projeto de Éolo Maia e Sylvio de Podestá] em 2004, mas nessa época eu ainda não estava presente. O primeiro gerente do circuito me chamou entre o final de 2005 e o início de 2006. Ele queria ajuda para entender os prédios, verificar a que se destinaria cada um deles e se a atividade e a demanda previstas seriam atendidas. Comecei fazendo assessoria para esse gerente, que ficou no circuito até o fim do primeiro mandato do governador. Na segunda gestão houve mudanças na Secretaria da Cultura e na gerência do circuito, mas como eu já estaja trabalhando e tinha definido uma série de coisas, pediram que eu permanecesse no projeto.
Mas sua relação com a praça é mais antiga, não?
Fiz o restauro da praça da Liberdade no início dos anos 1990, a pedido da mesma pessoa que veio a ser o primeiro gerente do circuito. Como a repercussão foi muito boa, fui chamada para ajudar no novo projeto, uma vez que eu tinha um conhecimento da história não apenas da praça, mas de todos os prédios. Ao longo de cem anos, a praça da Liberdade foi sendo descaracterizada por várias reformas que não respeitaram sua configuração original. Numa delas, houve um corte em suas laterais para alargar as avenidas. Com o tempo, foram feitas pavimentações sobre pavimentações, o que elevou sua altura original em mais de 50 centímetros. Nela eram também realizadas feiras de artesanato, de alimentação e de flores, pelas quais passavam mais de 20 mil pessoas por dia. Os jardins não mais existiam e a praça estava completamente degradada. Fiz, então, seu resgate e consegui que ela voltasse a ter o perímetro original.
Quando a senhora foi chamada para participar do circuito cultural já existia o conceito para a ocupação de cada um dos edifícios?
Algumas funções estavam definidas pela Secretaria da Cultura. Quando existia, por exemplo, a ideia de um museu, pediam que eu analisasse o programa e esboçasse manchas de área para ver se o prédio selecionado comportava aquelas demandas. É claro que a maioria deles precisou de intervenções, como de fato vieram a acontecer, algumas até com acréscimo de área.
Como foram escolhidos os arquitetos para cada projeto?
O primeiro, que deveria ser a sede da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, foi resultado de um concurso. A orquestra decidiu, porém, que precisava de uma plateia maior e nenhum dos prédios da praça comportava esse público. A Secretaria da Cultura então destinou o edifício ao Memorial de Minas Gerais. Optou-se por manter os arquitetos que haviam vencido o concurso [Carlos Maia, Débora Vieira Mendes, Eduardo Oliveira França, Humberto Hermeto e Igor Macedo de Araújo]. No caso do Museu das Minas e do Metal, de Paulo Mendes da Rocha, houve um convite por parte da secretaria.
Antes ou depois de ele ter recebido o Pritzker?
Antes. E a premiação foi ótima porque deu ainda mais idoneidade àquele convite. A secretaria o indicou, no que teve todo meu apoio. Não tínhamos nenhuma obra dele em Minas Gerais. O tema museográfico até mudou em relação ao inicialmente proposto, mas a arquitetura foi mantida na íntegra.
E o Espaço do Conhecimento, projetado pela senhora?
Quando comecei a assessoria, esse foi o primeiro conceito que chegou às minhas mãos: saber em qual dos prédios caberia um planetário. Havia um edifício dos anos 1960 que não tinha tombamento individual, no qual seria possível fazer mais intervenções. Desenvolvi então um estudo para mostrar que caberia ali um planetário de pequenas dimensões, cuja cúpula de nove metros de diâmetro alteraria demais os prédios de estrutura mais antiga. Não tínhamos, na época, patrocinadores para o projeto. Fiz um estudo um pouco mais avançado e quando veio o patrocinador, ele gostou do trabalho e pediu para que o projeto permanecesse.
O Centro Cultural Banco do Brasil é o mais recente componente do circuito?
Ele não é o mais recente. Todos são da mesma época, mas esse custou mais a deslanchar porque o edifício é muito grande e estava ocupado pela Secretaria da Defesa Social, que tem elevado número de funcionários e custou mais a desocupálo. Isso acabou atrasando o início da obra [o projeto foi feito pelos arquitetos Eneida Bretas e Jaime Wesley, do Banco do Brasil/ Belo Horizonte].
Qual é o quinto elemento do complexo cultural?
O Centro de Arte Popular, projeto de Janete Costa e Acácio Gil Borsoi. Além de ser uma figura extraordinária, Janete sempre foi ligada à valorização do artesanato e da arte popular. No Brasil foi quem mais trabalhou esse aspecto. E nós também não tínhamos nada dela em Belo Horizonte.
A museografia, será de Bia Lessa, mas, até o momento, não de quem será o autor do projeto de adequação do Museu do Homem Brasileiro. Ele ficará no prédio que era ocupado pelo Iepha [Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico.
Pouco antes de deixar o cargo, o governador Aécio Neves anunciou novos projetos que passarão a fazer parte do circuito. Quais são eles?
Um deles é o Museu do Homem Brasileiro, que ficará no prédio antes ocupado pelo Iepha [Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais e antiga sede da Secretaria de Viação e Obras]. A museografia será de Bia Lessa, mas ainda não foi decidido quem fará o projeto de adequação. Outro é o Museu do Automóvel, que deverá ser implantado em um terreno na parte de trás do Palácio da Liberdade. Outra proposta apresentada pelo ex-governador é transformar em um hotel o prédio onde hoje funciona o Ipsemg [Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais], um edifício modernista dos anos 1960, do professor Rafael Hardy. Ainda não temos um projeto para ele.
Na sua opinião, qual o projeto mais impressionante como conceito ou resultado final?
Apesar de os prédios serem todos do final do século 19 – com exceção do Espaço do Conhecimento, que é da década de 1960 -, cada um tem um tema específico e cada arquiteto tomou um critério de intervenção. Considero incrível o projeto de Paulo [Mendes da Rocha], que trabalhou internamente com um respeito muito grande em relação à parte mais antiga do edifício. No último pavimento, que era um terraço, ele criou uma grande galeria metálica pintada de vermelho e duas galerias laterais, compondo uma circulação contínua. Fez isso com os anexos laterais e uma escada posterior de vidro, cujo patamar é sempre o andar. Então, para passar de um andar a outro deve-se entrar no prédio. A volumetria nova dialoga de forma convincente com a antiga; não a agride, ao contrário agrega valores. Internamente, o projeto impressiona pela simplicidade, que considero brilhante.
A volumetria nova [do Museu das Minas e do Metal] dialoga de forma muito convincente com o prédio antigo e não o agride; ao contrário, agrega valores. Internamente o projeto impressiona pela simplicidade, que é brilhante.
O Memorial de Minas Gerais está sendo instalado no antigo prédio da Secretaria da Fazenda. Há alterações externas nesse conjunto?
Os autores limparam a edificação por dentro, mas não interferiram na fachada. Recuperaram a luz natural no pátio interno, que já não existia mais e foi integralmente recomposto em área e altura; foi resgatada a imponência e possibilitadas exposições em espaços maiores. A museografia é de Gringo Cardia, que fez uso muito mais de cenografia. Já o prédio do CCBB é mais novo, de 1928. Ele tem muito trabalho de madeira nas paredes, mas os tetos quase não possuem ornamentos, só no hall de entrada é que há um vitral colorido. A restauração está sendo mais nos pisos, madeiras e elevadores.
O projeto para o Espaço do Conhecimento tem influência de Éolo Maia?
O curioso é que me tornei vizinha dele. Quase 20 anos depois que fiz o restauro da praça, vim para o lado de Éolo, no Rainha da Sucata. Fomos casados na vida real e agora temos um prédio ao lado do outro. Toda a vida da gente é crescimento e acúmulo de conhecimento. Dessa forma, fazemos coisas de acordo com o que aprendemos e vivenciamos. Nesse sentido, é claro que o Espaço do Conhecimento tem influência de Éolo.
A mudança de perfil da praça deve alterar o perfil do frequentador. Há riscos de perda de público se os equipamentos não funcionarem de forma contínua?
A gestão do circuito cultural ainda não está pronta, mas a ideia é que sempre um ou dois equipamentos estejam funcionando, inclusive à noite. Até porque quem trabalha o dia inteiro não teria hora para visitá-lo, a não ser no final de semana. Acredito, porém, que a praça terá muito mais gente do que antes. Anteriormente, a frequência era apenas de funcionários e de pessoas que buscavam algo nas secretarias. Agora, as pessoas poderão visitar prédios nos quais nunca estiveram, apreciar um edifício do século 19 com intervenções do século 21.
A praça da Liberdade não tinha movimento à noite?
Excluindo as pessoas que faziam caminhadas, ela ficava bem vazia depois das 11 da noite. Com o circuito funcionando – todos os equipamentos terão café ou restaurante, alguns com funcionamento independente, como o café do Espaço do Conhecimento -, a frequência pode aumentar. Nossa expectativa é que o circuito cultural contagie a região e traga mais restaurantes, bares, galerias de arte, livrarias. Na realidade, isso já começou. Uma galeria de arte recém-inaugurada veio para a região e existem pessoas procurando imóveis para montar restaurantes e livrarias. Acredito que esse clima de animação vai se espalhar.
Formalmente, sua função no circuito é a de empreendedora pública. O que é isso?
Minha função é trabalhar com arquitetura, urbanismo e restauro, áreas nas quais sempre trabalhei. Só que, agora, com esse nome chique. Para o governo, o empreendedor público deve trazer das instituições privadas pessoas que possam dinamizar o serviço público.
A senhora já havia trabalhado para órgãos públicos?
Sempre fiz projetos para prefeituras, mas no meu escritório. Já tinha trabalhado para a minha cidade fazendo os melhores prédios possíveis, mas não tão diretamente ligada a um projeto para a população. Isso me encantou. è completamente diferente trabalha no seu escritório para um cliente e trabalhar no escritório do estado para criar um projeto que vai alcançar toda a população.
E como é ter certo poder de decisão sobre o trabalho de outros arquitetos?
Trata-se de um trabalho em equipe, porque desde as primeiras reuniões começo a observar o que está sendo proposto. De certa forma acabo fazendo parte da equipe, para não ocorrer aquela coisa chata, antipática, de ter que vetar. Quando necessário, tenho que fazer isso com argumentos, mas não é fácil. É por isso que virei política. Até agora, não tive problema nenhum.
Voltando um pouco no tempo, ao início de sua carreira, como começou seu envolvimento com a arquitetura?
Sílvio Vasconcellos, primo da minha mãe, é arquiteto. Já tinha, então, um estímulo – a casa em que morávamos é projeto dele. Nosso vizinho, o professor Radamés [Teixeira da Silva], lecionava na escola de arquitetura e eu também tinha grande admiração por ele. Isso me deu vontade de trabalhar na área. Quando fui fazer arquitetura, no segundo ano de faculdade, abri com colegas um escritório chamado Yellow. Éramos um bando de malucos, fazendo detalhamento para outros arquitetos. Na época, anos 1970, talvez por causa do milagre brasileiro, tínhamos trabalho demais. Trabalhei para Éolo nesse período, detalhando o viaduto Bias Fortes, projeto dele com Alvimar [Marchesotti Machado]. Cursei arquitetura, mas também era bailarina do Palácio das Artes até o nascimento da minha segunda filha. Tinha uma vida muito agitada: aula de arquitetura, escritório de arquitetura e ensaios de dança. Mas quando a gente é nova consegue tudo. Casei com Éolo – que conheci em uma festa – em janeiro de 1972 e só depois é que me formei. No intervalo entre casar e ter a primeira filha, três anos depois, trabalhei muito pouco com ele. Ele era sócio do Alvimar e do Marcinho (Márcio Lima], que foi meu colega de turma. Só mais tarde me tornei sócia do escritório. Depois trabalhamos com Sylvio [de Podestá] por um período, nos anos 1980, e em seguida mantivemos nosso escritório até 2000, quando Éolo faleceu. Nossos últimos projetos foram o Hospital Felício Roxo e o concurso do Museu do Egito.
Éolo e Podestá são associados à arquitetura pós-moderna em Minas. Esse movimento se diluiu?
Ele se perdeu um pouco à medida que as pessoas se afastaram, porque nós, da revista Pampulha, éramos uma equipe bastante unida. Não havia muita divulgação dos trabalhos realizados aqui, até que começou o Vão Livre. O primeiro Vão Livre foi Éolo quem fez. Depois ele agregou outros arquitetos para participar da publicação, que era colada na revista Informador das Construções. A revista Vão Livre cresceu, desvinculou-se da outra publicação, a ela se agregaram outros arquitetos e começou a circular. Foi então que resolvemos terminar com ela e editar a revista Pampulha. Começamos também a publicar livros e, então, a arquitetura daqui saiu para o Brasil. Até essa época não se tinha informação daqui e nem ela vinha de fora para nós. Não sabíamos, por exemplo, o que se estava fazendo no Recife, a não ser por revistas anteriores que já haviam acabado, como Acrópole e Módulo. A informação não circulava muito. Com a Pampulha e as outras publicações editadas aqui em Belo Horizonte, a arquitetura feita em Minas foi mostrada em outros lugares, e acabou dando no pós-moderno.
E por que as pessoas se afastaram? Houve divergências?
Elas se distanciaram pelas circunstâncias, mas não houve divergências. Cada um foi criando seu caminho. Nós ainda nos encontramos, mas já não há mais aquele grupo tão coeso como antes. Eram praticamente reuniões diárias, e isso não é comum acontecer agora. Além disso, as pessoas que aglutinavam mais eram Éolo e Veveco [Álvaro Hardy], e os dois estão militando lá em cima. A morte deles deu uma esfriada nisso. Éolo tinha a capacidade de aglutinar e integrar todo tipo de pessoa, era mesmo um agitador cultural.
A senhora integrava a equipe vencedora do concurso para a sede do grupo de dança Corpo. O projeto foi abandonado?
Não. Já detalhamos a primeira etapa, que é formada pela sede do grupo e pela galeria, inclusive com a compatibilização dos projetos complementares. A nova sede foi considerada apta a receber recursos pela Lei Rouanet e o grupo Corpo está buscando patrocínios para implementá-la.
É possível falar em arquitetura mineira atual? A senhora observa esse movimento?
Na minha opinião, não temos uma característica que aproxime a nova arquitetura feita em Minas. As pessoas estão trabalhando – há muitos jovens, muitos arquitetos bacanas aqui em Belo Horizonte, e eu conheço vários deles – e criando seus caminhos, à procura de novas conquistas, novas ideias, mas em conjunto com o Brasil como um todo. Acredito que esse elemento regional não existe mais, tudo é muito globalizado. Não tenho visto um movimento com a cara local.
As pessoas que aglutinavam mais em Minas eram Éolo e Veveco [Álvaro Hardy], e os dois estão militando lá em cima. A morte deles deu uma esfriada nisso. Éolo tinha a capacidade de aglutinar e integrar todo tipo de pessoa.
A contratação do mais importante arquiteto brasileiro para desenvolver o projeto da Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves não fez com que se perdesse a oportunidade de mostrar novos caminhos da arquitetura brasileira?
Com certeza. Foi uma escolha do governo, mas, se houvesse tempo e um outro tipo de conceito, poderia ter sido feito um concurso nacional ou até mesmo internacional. O tema é apaixonante, cativante, uma construção enorme, que teria uma aceitação maior ainda se fosse realizado um concurso internacional. Mas a opção foi chamar Oscar Niemeyer. Quando eu vi pela primeira vez a maquete, a solução não me entusiasmou. Agora, porém, quando vejo a cidade administrativa pronta, há nela coisas que me interessam muito. Percebi isso quando estive lá, outro dia. São visadas que só Niemeyer consegue fazer. A gente vai andando e descobrindo as coisas, algo bem bacana. Tirando aquela postura de olhar de frente, a implantação dura, quando se começa a circular há uma arquitetura que cria surpresas, na qual cada esquina apresenta uma novidade. Quando eu ia à obra, não percebia isso. Quando estive lá recentemente e comecei andar, observei visadas interessantes, que jamais poderia imaginar que existiriam ali.
Por Adilson Melendez
Publicada originalmente em PROJETODESIGN
Edição 363 Maio de 2010

Jô Vasconcellos

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