(Foto: Andrea Avezzù/Cortesia Bienal de Veneza)

Entrevista – Arquitetos Associados e a curadoria do pavilhão brasileiro na 17ª Bienal de Veneza

A entrevista publicada a seguir, de que participam os membros do estúdio mineiro colaborativo de arquitetura, o Arquitetos Associados, ocorreu em dois momentos. Uma primeira conversa - à distância - foi realizada com Paula Zasnicoff, André Luiz Prado, Bruno Santa Cecília e Carlos Alberto Maciel em maio passado, antes da abertura da Bienal de Veneza, e uma segunda parte, por escrito, sucedeu a visita dos arquitetos ao evento, na Itália, no final de agosto. Junto com o designer e artista visual Henrique Penha, o quinteto - além dos quatro mencionados acima, também Alexandre Brasil integra o escritório - foi encarregado em maio de 2019 de assumir a curadoria da exposição do pavilhão brasileiro na 17ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza. Inicialmente programada para ocorrer em 2020, a bienal foi finalmente inaugurada em maio de 2021 por causa da pandemia do Covid-19.

A entrevista oferece um panorama sobre o tema e os enfoques da participação nacional brasileira nessa Bienal de Veneza. Em síntese, refletindo sobre utopias, cotejam-se os ‘Futuros do Passado ’e os ‘Futuros do Presente’ nas duas salas do pavilhão, em linhas gerais dedicadas aos períodos moderno e contemporâneo. Na entrada, assim, o público é convidado a observar duas obras icônicas da produção moderna brasileira – a Plataforma Rodoviária de Brasilia, projeto de Lucio Costa, e o conjunto habitacional Pedregulho, no Rio de Janeiro, de Affonso Eduardo Reidy – tanto em termos arquitetônicos (fotografias, respectivamente, de Joana França e Leonardo Finotti estão expostas no pavilhão) quanto, e principalmente, da sua atual apropriação pelos usuários e moradores – fotografias de Luiza Baldan, de 2009, e de Gustavo Minas, de 2015, cumprem tal papel. Enfatizam-se as qualidades dos projetos como decisivas para as diversas apropriações das estruturas pelas pessoas. No grande bloco posterior, então, fala-se sobre possibilidades contemporâneas para um futuro melhor nas cidades, mais especificamente sobre a valorização dos rios e suas margens em São Paulo – nos centros urbanos, em geral – e a reocupação de estruturas abandonadas em áreas centrais. Para tanto, foram comissionados os filmes expostos no pavilhão.

O seu restauro e restabelecimento da condição original – com as portas laterais do bloco frontal passíveis de serem abertas para o exterior – eram prerrogativas dos curadores mas, por causa das complicações relacionadas à pandemia do Covid-19, tais medidas não se concretizaram. Fica à cargo da próxima curadoria, assim, a implementação do projeto, que teve como base o levantamento prévio de fotos, de imagens e de estudos anteriores sobre o pavilhão, realizado pela Fundação Bienal de São Paulo. A instituição paulista é a responsável pelas participações brasileiras nas bienais de Veneza.

 

Francesco Perrotta Bosch e quatro dos curadores do Pavilhão Brasil na 17ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza: Henrique Penha, Paula Zasnicoff, Alexandrea Brasil e Carlos Alberto Maciel (Foto: Priscila Penha)

 

Gostaria que analisassem a experiência do trabalho curatorial em equipe, inclusive sob o ponto de vista de pertencerem todos ao mesmo escritório. Na sua opinião, ainda, porque o Arquitetos Associados despertou o interesse da Fundação Bienal de São Paulo para essa representação brasileira em Veneza?

Carlos Alberto Maciel A Fundação Bienal tem incentivado curadorias coletivas. Já na edição anterior da Bienal de Arquitetura de Veneza houve a curadoria compartilhada [https://revistaprojeto.com.br/acervo/entrevista-16-bienal-de-arquitetura-de-veneza/] e, assim, o convite veio para o nosso escritório como um todo, junto com o Henrique [Penha]. Foi um encontro interessante. Nosso escritório (Arquitetos Associados) tem uma estrutura de trabalho flexível – temos trabalhos individuais, em dupla ou coletivos, assim como temos também o hábito de trabalhar com pessoas que não são do escritório. Então, trabalhar com o Henrique foi, pra nós, quase um processo natural de ouvir o outro, de reconhecer ideias. Foi fácil e produtivo.

Paula Zasnicoff Acho que de certo modo a Bienal de São Paulo reconheceu esse nosso tipo de atuação, de dissolução autoral, o que reverberou o tempo inteiro com a incorporação do Henrique à equipe. O processo fluiu com tranquilidade e em uma condição muito boa, porque o convite nos chegou com um ano de antecedência do que seria a data original  de inauguração da Bienal de Veneza, em 2020, o que é algo bem raro. Tivemos bastante tempo para trabalharmos juntos.

 

Qual era a experiência anterior do Arquitetos Associados com a curadoria de mostras?

CAM Mostras desse porte, nenhuma. Tínhamos organizado, por exemplo, há quinze anos, uma exposição de jovens arquitetos junto com colegas do Rio Grande do Sul, Brasília, São Paulo, que aconteceu nessas cidades todas. Acho que já era, lá atrás, um indicativo da nossa capacidade de nos articularmos com outros escritórios e irmos agregando novas vozes.

Bruno Santa Cecília Também nossos projetos em Inhotim, apesar de não serem propriamente trabalhos curatoriais, são uma experiência muito próxima da curadoria. Nos aproximamos a este tipo de trabalho nos anos todos em que estivemos lá e isso nos fez conhecer de perto o dia a dia e as dificuldades para se ‘colocar de pé’ uma exposição. Houve um longo aprendizado com os curadores de Inhotim.

CAM Apesar de não termos trabalhado diretamente com curadoria em Inhotim, frequentemente as discussões curatoriais sobre as exposições ocorriam durante o processo de projeto. Tivemos a oportunidade de conversar com os curadores a partir de outra perspectiva – das possibilidades de apropriação dos espaços, por exemplo -, ou seja, da construção arquitetônica em diálogo com a narrativa curatorial. Isso foi fundamental para o que fizemos em Veneza.

 

Apesar de não termos trabalhado diretamente com curadoria em Inhotim, frequentemente as discussões curatoriais sobre as exposições ocorriam durante o processo de projeto. Isso foi fundamental para o que fizemos em Veneza. (Carlos Alberto Maciel)

 

Sobretudo em uma bienal enorme como a de Veneza, em que cada exposição concorre com uma centena de outras, se trata de uma experiência fundamental. O visitante tem pouco tempo para percorrer as mostras.

PZ De fato, acho que ao nos fazer a proposta a Bienal estava bastante preocupada em fazer uma mostra voltada não para arquitetos somente, mas que fosse uma discussão aberta, inclusiva. O Henrique, por não ser arquiteto, contribuiu muito nas decisões que conduziram a exposição a um diálogo maior com outros campos de conhecimento.

 

Qual foi o percurso que vocês percorreram, então, das ideias iniciais até o projeto curatorial final?

PZ Sabíamos da necessidade de restauro do pavilhão e também do fato de estarem fechadas as aberturas laterais da primeira sala. Pensamos em primeiro lugar na possibilidade de restituir a condição original do edifício, com suas portas todas abertas, o que seria um ponto fundamental de diálogo com a proposta do [Hashim] Sarkis [curador desta 17º Bienal de Arquitetura de Veneza]. Esse era quase um statement da nossa proposta curatorial, a intervenção no pavilhão para reestabelecer a sua conexão com o exterior.

CAM Chegamos a fazer um anteprojeto completo de restauro do pavilhão e inclusive tentamos obter patrocínio para que isso acontecesse, mas infelizmente não aconteceu. O contexto da pandemia tornou tudo mais complexo. Sinalizamos a ideia na mostra, porém, como uma possibilidade futura.

PZ Para fazer essa proposta, foi necessário recuperar vários estudos e projetos anteriores sobre o Pavilhão do Brasil. É um edifício importante da arquitetura brasileira. Foi projetado por Henrique Mindlin, Giancarlo Palanti e Walmyr Amaral, e seu projeto executivo foi desenvolvido por Amerigo Marchesin, um arquiteto que trabalhou com (Carlo) Scarpa e, pela sofisticação de certos detalhes, contribuiu muito para a qualidade do pavilhão. A documentação fotográfica também foi muito importante, ajudou a identificar como os materiais foram sendo modificados ao longo do tempo. As fotos mais antigas mostram o segundo volume como um bloco em tijolos aparentes, mais conectado com uma certa materialidade veneziana do que da arquitetura moderna…

BSC É interessante a história desse projeto. Antes desse que foi construído, houve um primeiro projeto que era um edifício-ponte, sobre o canal que separa as duas partes do Giardini. Há também um registro de um pavilhão projetado pelo Oscar Niemeyer. Se pensarmos que essa iniciativa coincide com o momento em que Brasília era construída, não seria estranho que o pavilhão fosse projetado pelo Niemeyer. Mas as razões da escolha final ainda estão por ser explicadas.

CAM Sobre o conteúdo em si, partimos da discussão sobre ‘Como viveremos juntos no Brasil?’ e chegamos na ideia das utopias em solo brasileiro – o olhar civilizatório do moderno, de transformação e criação do novo, de um futuro melhor, embora cheio de contradições. A partir daí, chegamos em Brasília, talvez um dos principais experimentos do século 20 em termos de cidade, e depois especificamente na Plataforma Rodoviária [projeto de Lucio Costa], que é uma síntese da própria ideia da cidade. Identificamos os temas que mais nos interessavam e as situações que valiam a pena serem colocadas. Depois pensamos no Pedregulho [Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, de 1947], um experimento de habitação singular e igualmente um investimento público dedicado aos servidores públicos, algo que está fora da lógica do mercado. Um projeto com um ideal, que teve a Carmem Portinho como figura fundamental ao criar o Departamento de Habitação e propor o edifício – o papel dela talvez tenha sido mais importante do que o do próprio [Affonso Eduardo] Reidy.

BSC Tínhamos a experiência anterior de visitantes de bienais, que são eventos com densidade de informação enorme. Sabíamos que tínhamos que considerar tempos distintos para a apresentação do conteúdo – um curto e outro mais estendido, para quem queira passar mais tempo no pavilhão, e um outro ainda, de aprofundamento posterior. E um terceiro momento, que extrapola a exposição na forma de um livro – ou catálogo -, onde abordamos tópicos que na mostra são apenas pontuais, e aprofundamos os temas principais [o arquivo digital do catálogo foi disponibilizado gratuitamente para leitura, pela FBSP, através do link: https://issuu.com/bienal/docs/2107mia_catalogo_pt-br_fg]. Identificamos esses três tempos de visitação e, então, veio a discussão sobre como apresentá-los. Concluímos pela divisão da mostra em dois momentos – um relacionado às utopias ‘modernas’ e outro às ‘contemporâneas’ -, que correspondem às duas salas do pavilhão.

CAM São duas partes ou núcleos. ‘Futuros do Passado’, onde vemos como as utopias do passado estão hoje, como elas estão sendo apropriadas e quais possibilidades imprevistas – tão ou mais potentes quanto as ideias que as conceberam – elas abrem em relação ao seu propósito inicial. Trouxemos dois artistas com olhares não arquitetônicos: a Luiza Baldan, que fez um ensaio fotográfico na sua residência artística no Pedregulho e o Gustavo Minas, fotógrafo de rua que vivia em São Paulo e se mudou para Brasília. Ali começou a procurar nas cidades satélite material para fotografar – em Brasília, aparentemente não tinha. Até ele perceber que a plataforma rodoviária, em si, era um lugar interessantíssimo, diverso, com uma vida urbana potente. Ele passa por ela diariamente, há anos, indo e voltando do trabalho, e continua a produzir um registro fotográfico cotidiano da plataforma. É um material maravilhoso.

A plataforma (Rodoviária de Brasília) trata da mobilidade, da articulação urbana, da construção do espaço público, enquanto o Pedregulho é uma discussão da questão da habitação coletiva e social. Essas duas ideias são recolocadas em confronto na segunda parte da exposição, ‘Futuros do Presente’: de um lado, a Metrópole Fluvial, concebida pelo grupo de mesmo nome coordenado por Alexandre Delijaicov na FAU-USP, trata da reversão da tragédia dos rios paulistanos a partir da volta da sua navegabilidade e do uso público das margens. Enfim, da reversão da lógica rodoviária que predomina na cidade a partir de um olhar ambiental e urbano. E, de outro lado, as ocupações urbanas, com enfoque na ocupação Carolina Maria de Jesus, em Belo Horizonte. Propusemos, então, a realização de dois filmes para o evento, inspirados nesses temas. Convidamos o Amir Admoni, que é arquiteto e cineasta, para reinterpretar poeticamente o tema da apropriação dos rios e suas margens a partir da Metrópole Fluvial, e o trio de diretores Aiano Bemfica, Cris Araújo e Edinho Vieira para fazer um documentário sobre o cotidiano daquela comunidade de Minas Gerais. Esse filme aborda três escalas – a vida doméstica, em um hotel que esteve abandonado por 18 anos e que teve as unidades transformadas em residências mínimas pelos membros da ocupação; o convívio coletivo e a relação do edifício com a cidade, no centro de Belo Horizonte.

 

Imagens, respectivamente, dos filmes de Amir Admoni e do trio Aiano Bemfica, Cris Araújo e Edinho Vieira (Fotos: Andrea Avezzù/Cortesia Bienal de Veneza)

 

Vocês mencionaram a intenção de extrapolar o discurso arquitetônico. Que critérios embasaram a encomenda dos filmes feitos especialmente para a mostra?

André Luiz Prado Definimos o formato, não convencional, de disposição em três telas, para a criação de uma experiência imersiva. Nossa intenção, dentro da possibilidade de um tempo curtíssimo para se visitar a exposição, era que mais do que fixar um conteúdo, a pessoa se recordasse da experiência que teve naquele espaço. De ter entrado numa sala escura, com a tela nos três lados como se conformasse o espaço inteiro.

BSC Em termos de formato, a escala menor da primeira sala era um limitante, pois ela condicionava os tamanhos das fotos [Leonardo Finotti e Joana França têm também fotografias expostas no pavilhão]. Já na segunda sala, a nossa conversa com os artistas foi no sentido de se modular o tempo da narrativa para que não necessariamente o visitante precisasse esperar o filme começar para apreender seu conteúdo. A ideia é que os filmes passem em looping – o do Amir tem cerca de oito minutos, o da ocupação tem trinta minutos – e mesmo que você entre na sala no meio do video, consegue captar um sentido do que está em discussão mesmo em uma visita rápida.

PZ Exatamente porque não se trata de documentários descritivos, são muito mais poéticos. O próprio looping cria a sensação de que o fim e o início se conectam, é até difícil entender aonde estão as emendas.

BSC É importante lembrar que a participação do Henrique contribuiu muito nesse sentido. Ele trabalhou muitos anos com design de produtos de alta tecnologia, e tem um trabalho autoral de fotografia. E, para além da questão do formato, há uma diferenciação conceitual das utopias de que tratam cada sala. Na utopia moderna, o lugar do sonho estava por ser inaugurado. Já na utopia contemporânea, esse lugar se constrói sobre as bases físicas do mundo real, numa ressignificação e reapropriação das estruturas da cidade existente.

PZ São os futuros ideais, na sua condição atual, e os futuros possíveis.

CAM O que desloca a ideia da utopia em direção às heterotopias. Inclusive o título do filme do Amir é ‘Heterotopia Fluvial’. No século 20 tudo estava por construir e, agora, tudo está por ser reconstruído ou transformado. Não temos muito mais o que construir. A população brasileira começa a encolher, as cidades começam a ter pontos de esvaziamento, há centros vazios, todos fenômenos que estão se acentuando com a pandemia. Então, olhar para essas estruturas em processo de obsolescência e pensar em como reverter isso para ter uma cidade mais democrática, socialmente mais justa e ambientalmente mais viável, talvez seja a urgência contemporânea. Nesse sentido, os exemplos da Metrópole Fluvial e das ocupações sinalizam futuros melhores para todos. São reversões desejáveis e possíveis, dependendo de políticas públicas. Os filmes da mostra se colocam como alertas, portanto.

CAM E também as obras modernas da primeira sala têm esse sentido de uma reapropriação possível. Tem uma frase bonita do Lucio Costa – ‘Eu estava errado, eles estão certos. O sonho foi menor do que a realidade’ – que mostra o limite da possibilidade de atuação do arquiteto. Sendo feita a estrutura, se ela é boa e generosa, como Lucio Costa sempre fez, multiplica-se o seu potencial de acolher a vida, aquilo que o Paulo Mendes da Rocha sempre dizia sobre ‘acolher a imprevisibilidade da vida’. No Pedregulho é a mesma coisa, a apropriação daquela estrutura, hoje, é absolutamente diversa da imaginada originalmente e muito melhor do que todos os exemplos de habitação coletiva que vemos sendo produzidos atualmente. De tal modo que, mesmo num estado de obsolescência acelerada, que foi parcialmente revertido pelo restauro do edifício, ainda assim o tipo de estrutura que ele oferece é ainda muito melhor do que tudo que se tem feito.

PZ Algumas fotos da Luiza (Baldan) são exemplares nesse sentido, porque mostram as pessoas ocupando a circulação do edifício, que é tão generosa, e tem uma qualidade ambiental tão interessante. No final, o corredor vira um espaço coletivo e os apartamentos se estendem para a circulação. Isso não era previsto, é uma apropriação contemporânea que ilustra o que acabamos de dizer. Uma estrutura generosa e virtuosa conseguiu absorver essa imprevisibilidade da vida. Põe sofá, põe planta no corredor.

CAM Nesse sentido, é uma exposição que fala diretamente sobre arquitetura. Mostrando a vida nos edifícios e espaços, fala-se de arquitetura por um viés não arquitetônico.

CAM E tem um outro aspecto, que esteve sempre presente na nossa proposta, o de investir na produção de conhecimento, na criação de novas obras – não queríamos uma somatória de portfólios. É uma exposição muito simples em termos materiais e que, inclusive, vai gerar pouco resíduo no final. Os filmes continuarão a existir depois da bienal, vão se transformar em um legado. O outro legado seria o restauro do edifício mas, esse, fica a cargo de quem vier depois de nós. É possível de ser feito, recuperando a qualidade essencial do pavilhão, ou seja, a sua diversidade. Havia uma parte aberta, que se integrava originalmente com o jardim, e um espaço mais introspectivo, com a luz alta. O pavilhão representa a ideia de integração espacial, muito peculiar da arquitetura brasileira como um todo.

 

Nossa intenção, dentro da possibilidade de um tempo curtíssimo para se visitar a exposição, era que mais do que fixar um conteúdo, a pessoa se recordasse da experiência que teve naquele espaço. (André Luiz Prado)

 

Vocês projetaram a expografia também?

CAM A expografia era abrir as portas e constituir as duas salas no bloco do fundo. Elas têm uma antecâmara comum, onde inserimos duas paredes de espelho para que os visitantes se vejam refletidos quando circulam pelo espaço – espelhados duplamente, num ângulo que gera uma perspectiva infinita. É muito simples.

PZ A nossa expografia reaproveita coisas que estavam lá no pavilhão – de novo, a preocupação com a sustentabilidade, de não gerar muito resíduo.

CAM Fizemos um extenso painel, na entrada do pavilhão, com uma linha do tempo das utopias em solo brasileiro que fomos construindo ao longo de todo o processo, desde que fomos convidados pela Bienal de São Paulo e antes mesmo da apresentação do tema geral da bienal. A nossa linha do tempo expande inclusive, temporalmente, a ideia de utopia. Começa com a cosmovisão guarani do Yvy Marãney, que é a ideia da ‘terra sem males’ – a busca de um lugar, espelho da Terra, entretanto sem guerras, doenças. Uma ideia de utopia muito anterior ao termo ser cunhado por Thomas More. Passa por More, pelas utopias do Quilombo dos Palmares, de Canudos, pelas utopias agrárias, em Santa Catarina e na Colônia Cecília – todas feitas por imigrantes. Depois a gente entra no século 20 com Le Corbusier, Brasília, a Plataforma Rodoviária, Lina Bo Bardi e o Sesc Pompeia. Ao editar a preexistência, Lina, de certa maneira, antecede a discussão que colocamos na segunda sala. Por fim, vêm a Metrópole Fluvial e as ocupações. Fomos pesquisando e construindo essa linha do tempo durante todo o ano. O projeto gráfico e de sinalização, elaborado pelo Estudio Guayabo (Valquíria Rabelo e Daniel Bilac), deu forma à exposição e foi fundamental para definir o caráter da mostra.

 

Vocês acabaram de visitar a Bienal e acompanharam a premiação. Quais as impressões trouxeram de Veneza?

Henrique Penha A maior impressão é a complexidade dos problemas que coletivamente temos que resolver para ‘viver juntos’. Enquanto países diferentes tem que lidar com desafios únicos de cada geografia, visitando a exposição fica muito claro entender que precisamos realmente trabalhar juntos, de forma extremamente colaborativa em várias dimensões, para conseguir soluções que deixam de ser sonhos e começam a virar realidade. A entrada do pavilhão japonês tinha uma frase excelente: “É absurdo pensar que nossas ações pertencem somente a nós”.

 

 

PZ A questão ambiental parece permear todos os discursos, motivados pelos temas principais definidos pela curadoria do evento. Muitas vezes com muita pesquisa, mapeamento e diagnóstico e aparentemente pouca efetividade para transformar de verdade as situações críticas identificadas. É preciso reconhecer que estamos em um momento em que o mundo está precisando se apegar a isso para enxergar outras possibilidades. Mas os trabalhos que mais chamaram nossa atenção – digo nossa porque visitamos juntos e fomos trocando impressões ao longo dos dias – foram aqueles que tinham ou uma abordagem poética do problema, ou apresentam iniciativas concretas para abrir novos caminhos. Nesse sentido, a Dinamarca fez uma belíssima participação, criando uma infraestrutura didadicamente planejada para reutilizar toda a água de chuva do pavilhão ao longo da mostra com muita imaginação.

BSC Sim, já os trabalhos premiados podem ser localizados nessa segunda categoria: a pesquisa dos Emirados Árabes Unidos sobre o aproveitamento dos rejeitos da dessalinização da água para substituir o cimento portland – de alto impacto ambiental para sua produção – tem um grande potencial de induzir processos e materiais para uma construção ambientalmente mais responsável; a proposta das Filipinas de uma biblioteca construída com processos colaborativos e inclusivos e os projetos dos alemães do Raumlabor são exemplos que reeditam os modos convencionais de projeto e construção.

 

 

CAM Entre as explorações mais poéticas e reflexivas, nos impressionou a iniciativa japonesa, que faz uma arqueologia de uma casa ordinária de Tóquio, já sem uso, que foi desmontada e cujas partes foram trazidas para Veneza e formam a exposição, não só como material expográfico, mas como material de construção reciclado e usado para intervenções no espaço. É uma reflexão sobre o tempo e sobre o desuso. De outro lado, uma instalação no Arsenale na área dedicada a Veneza fez um piso que, com o passar de milhares de visitantes, vai quebrando e virando poeira. Chama-se City to Dust (Da cidade à poeira). Esse desgaste está sendo registrado a cada mês com uma fotografia. É impressionante como algo nem sempre perceptível pelo indivíduo – o impacto da sua presença e ação individual em um suporte material – é evidenciado de um modo ao mesmo tempo potente e poético.

 

 

PZ Romênia é outro país que trouxe uma discussão interessante sobre a relação entre a migração – e as péssimas condições de vida dos romenos vivendo fora do país – e o esvaziamento de casas e cidades, com todas as consequências negativas desse processo de encolhimento. Embora se trate de um diagnóstico, a exposição é muito impactante e bonita. Como é também a da Polônia, que se concentra no fato de o país ser predominantemente rural, mas com paisagem infraestruturadas e já bastante modificadas, que são lugares de disputa.

Alexandre Brasil Embora predomine o tom alarmista dos diagnósticos e pesquisas, algumas propostas de projetos comprometidos com a transformação ambiental e urbana se destacam: uma sala inteiramente dedicada ao extenso trabalho de Paola Viganó e Bernardo Secchi discute a cidade do futuro com projetos urbanos reais; e logo ao lado, o coletivo Dogma apresenta uma pesquisa que discute a redefinição – programática, urbana, infraestrutural – das periferias belgas com propostas muito interessantes de intervenções arquitetônicas que poderiam ser implantadas gradualmente, promovendo uma transformação daquelas áreas no tempo. Há um certo tom utópico em um grande número de propostas, o que não é mal.

BSC Exatamente. A utopia surge justamente nos momentos críticos da humanidade para tentar lançar luz na escuridão. Uma alternativa para continuarmos a caminhar para frente. (Por Evelise Grunow)

 

 

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