Conteúdo CAU/BR:
O CAU Brasil na promoção da equidade de gênero

Tem tomado força nos últimos anos o chamado por mais equidade e por maior representatividade, a partir da consciência de que os espaços de decisão na arquitetura e no planejamento urbano representam historicamente visões e interesses de grupos restritos e pouco diversos, que não refletem completamente as reais necessidades da maioria dos cidadãos e cidadãs.

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), enquanto promotor da arquitetura e urbanismo para todos e todas, tem ampliado a percepção de seu papel no fomento à equidade como vetor de transformação social. Como descrito nas diretrizes da União Internacional dos Arquitetos (UIA):

 

É fundamental que os arquitetos tenham a capacidade de compreender e responder às diversas necessidades dos clientes e da comunidade como um todo. Esse objetivo será mais facilmente alcançado quando todas as esferas da profissão refletirem a diversidade da sociedade.” (UIA)1

 

Desde os primeiros levantamentos realizados pelo Conselho sobre a presença da mulher na arquitetura e urbanismo, a participação feminina na profissão tem sido crescente e tende ainda a aumentar, considerando que quanto menor a faixa etária, maior a proporção de mulheres.

 

Mulheres Homens

 

Atualmente 2  , do total de 196.825 profissionais registrados no CAU, 126.638 são mulheres (64,34%) e 70.187 homens (35,66%). Na faixa de até 29 anos, as mulheres chegam a representar 76% dos profissionais ativos.

As mulheres são também maioria em 25 das 27 Unidades da federação, lideradas por Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Alagoas, onde elas representam 73% dos profissionais ativos. Em todos os estados e no Distrito Federal, esse percentual aumentou no último ano.

A decisão de uma rede de mulheres em ocupar os espaços decisórios da profissão fez com que o número de conselheiras estaduais eleitas para o triênio 2021-2023 aumentasse 17% em relação à gestão anterior. As mulheres já são maioria na maior parte dos Plenários estaduais e houve um aumento global da representatividade feminina nos quatro primeiros mandatos desde a criação do Conselho.

 

Mulheres Homens

 

No âmbito do Colegiado das Entidades Nacionais de Arquitetos e Urbanistas (CEAU), o cenário também é otimista: enquanto em 2019, somente duas das sete entidades tinham maioria feminina, atualmente somente duas têm maioria masculina – duas são paritárias e três já são compostas por mulheres em sua maioria.3

 

Mulheres Homens

 

Pela primeira vez na história, seis das sete entidades são presididas por mulheres. No caso do CAU Brasil e do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), que este ano completa 100 anos de história, a presidência feminina é um fato inédito.

 

Nadia Somekh (CAU Brasil); Luciana Schenk (ABAP); Ana Goes (ABEA); Eleonora Mascia (FNA); Maria Elisa Baptista (Direção Nacional do IAB); Francieli Schallenberger (FeNEA)

 

O teto de vidro

Mesmo com esse avanço em quase todas as categorias, ainda há um caminho a ser percorrido para um cenário de equidade. Nas posições de presidência, por exemplo, houve uma redução de 4% na participação feminina. Das 13 mulheres que se candidataram a presidências de CAU/ UF, somente 6 foram eleitas, ou seja, menos da metade. Dentre os homens, por outro lado, 21 dos 25 candidatos foram empossados presidentes, ou seja 84% deles. Atualmente, menos de 1/ 4 dos presidentes de CAU/ UF são mulheres.

Candidatar-se a um cargo de presidência não é uma tarefa simples para uma mulher, muito menos em tempos de pandemia. O impacto do viés inconsciente 4  (preconceitos, crenças culturais e estereótipos) na carreira das mulheres acaba conformando o chamado ‘teto de vidro’ que impede que as mulheres alcancem o mesmo respeito e autoconfiança dos homens e avancem em posições mais altas de liderança.

 

Permita-me explicar; Eu não sou uma arquiteta feminina. Eu sou arquiteta. Quando falamos de gênero, tendemos a falar sobre mulheres. Os homens não têm realmente um gênero. Eles são apenas… neutros. Sem gênero.” (Dorte Mandrup) 5

 

Na arquitetura, esse fenômeno tem sido cada vez mais discutido internacionalmente. Denise Scott Brown, que protagonizou a controvérsia sobre o machismo e a coautoria no prêmio Pritzker, descreve essa barreira:

 

Há tantas mulheres quanto homens nos primeiros estágios da prática da arquitetura, mas à medida que elas avançam alguns degraus, as mulheres são barradas por um teto de vidro. Eu costumo dizer às jovens profissionais: quando vocês chegarem nele, vão achar que a culpa é de vocês e isso vai destruí‑las, a menos que saibam um pouco de feminismo”. (Denise Scott Brown) 6

 

É também latente a necessidade de uma divisão do trabalho não remunerado mais equilibrada para que as mulheres possam de forma natural e proporcional ocupar parte dos espaços mais altos da profissão. Segundo dados do IBGE 7, no terceiro trimestre de 2020, 8,5 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho. No contexto da pandemia, elas se sobrecarregaram ainda mais com afazeres domésticos e cuidados com outras pessoas, dedicando quase o dobro de horas semanais com essas atividades do que os homens. O 1º Diagnóstico Gênero na Arquitetura e Urbanismo8, consolidado pelo CAU em 2020, demonstrou, por exemplo, que o número de mulheres que declaram ter muita dificuldade em conciliar trabalho e parentalidade é 15 vezes maior do que o de homens.

Em 1977, a Professora Emérita da Columbia University, Gwendolyn Wright em On the Fringe of the Profession: Women in American Architecture 9, traçou o perfil das trajetórias respeitáveis de mulheres na arquitetura, identificando quatro posições:

• a arquiteta excepcional, que, sacrificando a vida pessoal, casamento, filhos etc. e, trabalhando arduamente, alcançou um grau de reconhecimento incomum para uma mulher, e comparável ao de um homem excepcional;

• a desenhista anônima, que trabalha em escritórios tolerando a discriminação e a falta de reconhecimento do mérito de seu trabalho. Essa profissional também encontrava dificuldades em conciliar a profissão com a vida pessoal, o casamento e os serviços domésticos, na maioria ainda sob sua maior responsabilidade;

• a profissional adjunta, que, possuindo interesse pelo aspecto social do ambiente construído, seguiu caminhos diferentes na arquitetura: professora, historiadora, crítica, escritora, jornalista etc.;

• a profissional das reformas sociais, que, também sem uma formação específica em arquitetura, dedicou-se a buscar alternativas de habitação e cidadania para os excluídos ou marginalizados.

 

Considerando que na média nacional as mulheres representam 64% dos profissionais de arquitetura e urbanismo ativos, os percentuais de representatividade feminina ainda estão aquém de um cenário de equidade. Comparando-se os números das conselheiras estaduais aos percentuais de profissionais ativas, por exemplo, nota-se que em muitos estados elas ainda estão subrepresentadas.

Em quatro deles os percentuais de conselheiras são menores do que a metade dos percentuais de arquitetas: Bahia, Mato Grosso do Sul, Paraná e Maranhão. No Maranhão, enquanto as mulheres representam 60% dos profissionais ativos, o plenário possui somente 13% de representantes femininas. Já no Plenário do CAU Brasil, apesar de as conselheiras suplentes representarem a metade dos eleitos, entre os 28 titulares somente 10 são mulheres.

 

Coeficiente de represenividade

 

A interseccionalidade:
uma chave necessária

 

A unidade na luta das mulheres em nossas sociedades não depende apenas da nossa capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas exige, também, a superação de ideologias complementares desse sistema de opressão, como é o caso do racismo.” (Sueli Carneiro)10

 

Se incluir a perspectiva de gênero na profissão implica em desconstruir a visão dos profissionais de arquitetura como um grupo universal e entender as assimetrias entre os homens e as mulheres na prática profissional, apresentar uma leitura homogênea do conjunto de mulheres é igualmente limitador e redutivo. Longe de serem uma problemática binária e estruturada em categorias unidimensionais, as inequidades de gênero são problemas complexos e multicausados que, por consequência, requerem soluções também complexas e multidimensionais.

Para explicar essa leitura de uma forma didática, é possível recorrer à uma ação cunhada nos Estados Unidos contra a empresa General Motors, que foi objeto de estudo da jurista norte americana Kimberlé Crenshaw11, a quem é atribuída a sistematização do conceito de interseccionalidade. Nesse exemplo, um grupo de mulheres afro-americanas moveu uma ação contra a GM, alegando que a empresa não ofertava oportunidades de emprego para elas. De fato, havia vagas para homens negros nas linhas de montagem e para mulheres brancas como secretárias, mas não para mulheres negras, que não se enquadravam nos requisitos de nenhuma das lotações.

No processo, ficou clara a incapacidade do tribunal para compreender a opressão mista que as mulheres haviam sofrido, de caráter simultaneamente sexista e racista. A orientação da corte foi de que se desmembrasse o processo em duas vertentes: uma que comprovasse que a GM tivesse praticado discriminação racial e outra discriminação de gênero.

Em ambos os casos a fábrica saiu impune, pois foi capaz de provar que em seu corpo funcional havia funcionários negros e mulheres. Ademais, ao alegar que ao analisar os dois vieses simultaneamente a corte estaria conferindo privilégios às mulheres negras, o júri desconsiderou que na verdade a própria necessidade dessa combinação era, pelo contrário, reflexo de uma intersecção de vulnerabilidades à qual os homens negros e as mulheres brancas não estavam sujeitos.12

 

As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca. Quando falamos em garantir as mesmas oportunidades para homens e mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para que tipo de mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os anúncios de emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparência”. (Sueli Carneiro)13

 

A interseccionalidade, portanto, nada mais é do que o entendimento de que um sujeito não é composto apenas por um perfil identitário. Uma pessoa não é, por exemplo, uma mulher por um lado e alguém com deficiência por outro; ela é a combinação de ambos ao mesmo tempo, ou seja: uma mulher com deficiência.14 É justamente por essas múltiplas sobreposições que as suas experiências sociais se especificam e as suas vulnerabilidades operam.

 

 

Para Crenshaw e diversas outras autoras, é necessário priorizar a inclusão de grupos mais marginalizados. Se focarmos na resolução dos problemas e no atendimento das necessidades dos sujeitos mais vulnerabilizados, todos os outros cidadãos serão por consequência beneficiados. “When they enter, we all enter”, ela afirma, ou seja: quando essas pessoas forem incluídas, todas e todos nós seremos.15

Em seu artigo O Peixe Morto na Praia: o Problema das Mulheres na Arquitetura, a arquiteta sul-africana Khensani de Klerk16 traz a leitura interseccional à profissão, considerando aspectos como representatividade e remuneração. Por meio de uma metáfora entre a profissão e uma praia, por ela denominada a “praia da hegemonia”, ela descreve:

 

[Nela,] os homens brancos estão vestidos e continuam sentados na praia de areia macia, respirando constantemente o ar fresco (…) os negros estão nadando na água, o que parece refrescante e está bem desde o ponto de vista do homem branco, mas é perturbador para o homem negro que apesar de ter o privilégio de respirar ar fresco, seus pés permanecem sempre encharcados no mar (…) temos as mulheres brancas também nadando na água, cansadamente, sem pausa na praia, tendo que fazer um esforço para chegar até a areia, com apenas algumas, de fato, chegando à costa. (…) Finalmente, temos mulheres negras (ah, o estado familiar que conheço tão bem). Nós nos afogamos nas profundezas do oceano, olhando para os reflexos de luz e constantemente exercendo nossos esforços para nadar através da água sem ar. (…) Às vezes, em uma ocasião rara, uma mulher negra chega à praia e, quando chega lá, é chocante para todos, inclusive para ela.” (Khensani de Klerk)

 

Ilustração do artigo de Khensani de Klerk

 

O 2º Censo dos Arquitetos e Urbanistas do Brasil, realizado em 2020, contou com a participação de 38.328 (21%) dos então aproximadamente 180 mil arquitetos e urbanistas em atividade no país. Em uma breve análise prévia dos dados, ainda em fase de tabulação, é possível constatar que a profissão é majoritariamente branca e que somente 27% dos respondentes se declararam de outras raças. Em comparação à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral (PNAD) do IBGE17, nota-se a subrepresentatividade de profissionais negros (categoria composta por pretos e pardos) que, enquanto na sociedade brasileira correspondem à 55% da população, na profissão representam apenas 21% dos arquitetos e urbanistas.

 


* No censo do CAU, em ‘outros’ foram agrupados os respondentes que se declararam indígenas (0,3%), orientais (1,7%), mestiços (3,6%) e os que preferiram não informar (4,2%). No PNAD, a categoria ‘outros’ corresponde às opções ‘amarela’, ‘indígena’ ou ‘sem declaração’, e os percentuais individuais não são informados.

 

Um exemplo claro da necessidade de um olhar interseccional para os números da profissão é o cruzamento de dados de gênero, raça e renda mensal individual. Omitindo-se dados de raça, é já notável a diferença de remuneração entre homens e mulheres cisgêneros. Quanto maior a faixa salarial, menor é o percentual de mulheres e maior o de homens.

Combinando esses dados a informações raciais, é possível ver que as mulheres negras sequer aparecem na faixa de mais de 15 salários mínimos. É também notável que o percentual de mulheres brancas se mantém mais ou menos constante ao longo das primeiras faixas e só se reduz, consideravelmente, nos salários mais altos, comprovando a existência de um “teto de vidro”. Já para as mulheres negras, o teto de vidro parece ser o próprio acesso e permanência na profissão.

 

 

Retomando os dados do 1º Diagnóstico Gênero na Arquitetura e Urbanismo, é possível fazer uma relação entre a baixa representatividade de mulheres negras e o assédio. De todas as inequidades identificadas no estudo, a maior delas foi: as arquitetas e urbanistas negras sofrem 16 vezes mais assédio sexual do que arquitetos e urbanistas brancos.

 

Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais alto nível de opressão.” (Lélia Gonzalez)18

 

As ações corretivas do CAU

Em março de 2019 o CAU Brasil apresentou uma visão completa sobre a presença da mulher na arquitetura e urbanismo. O estudo inédito demonstrou o crescimento da participação feminina no setor, mas ainda uma baixa representatividade das mulheres nas instâncias decisórias de entidades profissionais e em premiações.

 

Corrigir esse quadro não é apenas uma questão de adicionar alguns nomes ou mesmo milhares à história da Arquitetura. Não é apenas uma questão de justiça humana ou precisão histórica, mas uma maneira de entender mais completamente a arquitetura e as formas complexas em que é produzida.” (Beatriz Colomina)19

 

 

Um ano antes, o Conselho havia se tornado signatário dos Princípios de Empoderamento das Mulheres, uma plataforma da ONU Mulheres e do Pacto Global em promoção da equidade de gênero. A partir daquele marco, uma série de medidas foram tomadas em diversas escalas para buscar se delinear coletivamente uma estratégia de mitigação das assimetrias da profissão, entre elas:

A instituição de duas Comissões Temporárias para tratar da matéria: a Comissão Temporária para a Equidade de Gênero – CTEG (entre 1/ 05/ 19 e 30/ 04/ 20) e a Comissão Temporária de Política para a Equidade de Gênero – CTPEG (entre 7/ 8/ 20 e 16/ 12/ 2020), ambas coordenadas pelas atuais Presidente e Vice-Presidente do CAU Brasil, Nadia Somekh e Daniela Sarmento;

A promoção, pelos CAU/ UF, de oito etapas do I Ciclo de Debates Mulheres na Arquitetura – Cidades Inclusivas para as Mulheres, entre 3/ 7/ 2019 e 10/ 3/ 2020, nos estados de Santa Catarina, Bahia, Rio Grande do Sul, Sergipe, Ceará, Paraná e São Paulo, com a participação de mais de 800 pessoas;

 

I Ciclo de Debates Mulheres na Arquitetura – Cidades Inclusivas para as Mulheres, nos estados de
Santa Catarina (1 e 2), Bahia (3), Rio Grande do Sul (4), Sergipe (5), Ceará (6), Paraná (7) e São Paulo (8)

 

A produção do vídeo Equidade no COTIDIANO da Arquitetura e Urbanismo, que aborda o binômio casa e cidade (privado X público) no dia a dia das mulheres, lançado em dezembro de 2020 e dirigido pela cineasta, arquiteta e urbanista Denise Vieira;

 

Imagens do vídeo Equidade no COTIDIANO da Arquitetura e Urbanismo, dirigido pela cineasta, arquiteta e urbanista Denise Vieira

 

A realização da pesquisa Equidade na Formação (de dezembro de 2019 a março de 2020), junto à Federação Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo (FeNEA), em fase de tabulação;

A realização do 1º Diagnóstico Gênero na Arquitetura e Urbanismo (de julho de 2019 a fevereiro de 2020), que apontou que:

– As mulheres negras e as mulheres com filhos, principalmente na primeira infância, fazem parte do grupo de profissionais que encontram maiores obstáculos ao longo da carreira;

– Os índices de assédio e violência sexual contra as mulheres na profissão devem ser objeto de uma política corretiva;

– Mesmo as gerações mais novas de profissionais ainda vivenciam inequidades e percebem a necessidade por uma divisão mais equilibrada dos trabalhos (remunerados ou não) entre homens e mulheres; e

– Grande parte dos homens ainda deve ser sensibilizada para a importância da promoção da equidade de gênero na profissão e nas cidades.

 

Ranking da inequidade de gênero segundo o 1º Diagnóstico Gênero na Arquitetura e Urbanismo

 

A instituição do Dia Nacional da Mulher Arquiteta, comemorado no dia 31 de julho, instituído por meio da Resolução Nº 194, de 25 de setembro de 2020;

 

Quando Bob [Venturi] e eu nos casamos, foi um grande choque para mim. Eu era professora universitária, várias pessoas achavam que eu fazia um bom trabalho, eu era bastante conhecida (…) De repente eu percebi que as pessoas passaram a me considerar a datilógrafa do Bob, a secretária do Bob, me perguntavam ‘você poderia se retirar para tirarmos uma foto dos arquitetos, com licença?’; eu dizia ‘eu sou uma arquiteta’.” (Denise Scott Brown)20

 

Esse processo culminou com a aprovação da Política do CAU para a Equidade de Gênero21, aprovada em dezembro de 2020 pelo Plenário do CAU Brasil. O documento foi elaborado a partir dos resultados de todas as ações elencadas acima e com a contribuição de uma rede de mulheres e homens dispostos a tornar a arquitetura e as cidades brasileiras mais inclusivas, sustentáveis e justas.

Suas 37 diretrizes foram estruturadas em seis eixos e têm como objetivo orientar as ações para o atendimento do compromisso assumido pelo Conselho em 2018 de promover a equidade em todas as suas instâncias e em seu relacionamento com a sociedade:

 

 

Do primeiro ao último eixo, parte-se da escala mais ampla, considerando que o compromisso prioritário do CAU é com a sociedade, até a sua esfera mais direta de atuação: a do próprio Conselho. Esse percurso transcorre a própria trajetória formativa dos arquitetos e das arquitetas e urbanistas, desde a graduação até a prática profissional; propõe uma releitura do passado da profissão, e engloba também as suas interfaces com a formulação e implementação de políticas públicas. Essa agenda, disponível em www.caubr.gov.br/equidade, deve ser revisitada e reformulada de maneira contínua e coletiva.

 

Uma gestão feminina

Após o levantamento realizado em 2019 sobre a presença da mulher na arquitetura e urbanismo22, o cenário da participação feminina no setor, em especial no CAU Brasil, mudou. Se nas eleições de 2017 o estado de Santa Catarina inovou ao compor uma chapa integralmente feminina para as eleições do CAU, em 2020 três estados repetiram esse feito: São Paulo, Mato Grosso do Sul e novamente Santa Catarina.

A Chapa 1 concorrente ao CAU São Paulo, por exemplo, foi formada somente por mulheres e contou com a participação de 156 arquitetas e urbanistas, sendo eleita com uma diferença de mais de 12 mil votos dos segundos colocados. Como resultado, não apenas a atual Presidência do CAU São Paulo é feminina, como todas as coordenações de suas comissões permanentes. A atual e primeira Presidente mulher do CAU Brasil, Nadia Somekh, integrante da mesma chapa, destaca:

 

Sabendo que a Arquitetura é uma profissão historicamente masculina, nossa mobilização não tem como objetivo ocupar o lugar dos homens, e sim compartilhá-lo e tornar o exercício profissional mais diverso, acolhedor e representativo”. (Nadia Somekh)

 

A ideia de gender mainstreaming23, difundida desde a III Conferência Mundial sobre as Mulheres da ONU, em Nairobi, e consolidada na IV Conferência, em Pequim, em 1995, sugere a incorporação da dimensão de gênero em todas as esferas dos planos e ações públicas, em suas estruturas políticas, econômicas e sociais.

Para tal, promover a equidade de gênero perpassa também por uma reflexão sobre os cânones estabelecidos e uma ressignificação dos modelos de gestão e governança vigentes, para incorporar características tradicionalmente não associadas às lideranças masculinas, como o acolhimento, o trabalho menos hierárquico e mais horizontal, a transversalidade e a colaboração.

Em um manifesto por uma cultura de sororidade no mercado da arquitetura e urbanismo24, a câmara temática Mulheres na Arquitetura do CAU/  SC propôs, em 2020, que as mulheres arquitetas e urbanistas abandonassem a percepção de que é necessário competir umas com as outras pelos poucos espaços que lhes são concedidos e projetassem, em união, cenários mais agradáveis para todas as mulheres e toda a sociedade.

 

Chapa CAU + Plural, eleita em São Paulo

 

Somos mulheres que escolheram a arquitetura e urbanismo e temos que vencer cenários nem sempre amigáveis. Quantas vezes acreditamos que devemos competir umas com as outras? Que não somos competentes o suficiente? Quantas vezes sofremos caladas em situações de assédio dentro da sala de aula, no escritório, na rua? Ou nos sobrecarregamos com as tarefas da maternidade, da família e do trabalho? Quantas vezes sentimos nossa voz silenciada ou interrompida. Quantas vezes ficamos invisíveis? Esses cenários precisam ser vencidos por todas nós. Com o entendimento de todos, podemos mudar esta realidade. Somos mais de 60% na nossa profissão e seremos muito mais nos próximos anos. Esta condição nos permite construir um outro futuro para nós mesmas e para a arquitetura e urbanismo. Um futuro de empoderamento, com valorização do nosso trabalho, com remuneração equivalente às dos nossos colegas e sem violência de gênero. A Câmara Temática Mulheres na Arquitetura do CAU/ SC te convida a tomar parte neste desafio. Se em breve, nós, mulheres, seremos 75% dos profissionais na arquitetura, podemos estimular a ética profissional, praticando relações com base em valores como a igualdade e o respeito mútuo. A nossa força está em promover a união. Vamos trazer o conceito de sororidade para o mercado da arquitetura e da construção. A sororidade nos torna mais seguras. A união nos faz mais poderosas. Em nome de todas as que vieram antes de nós, e por todas que ainda virão, vamos construir juntas este futuro. Como arquitetas, podemos ajudar a projetar cenários mais amigáveis para todas as mulheres e para toda a sociedade.” (Câmara Temática Mulheres na Arquitetura do CAU/ SC)

 

As próprias críticas a premiações como o Pritzker, por exemplo, referem-se ao seu estímulo à cultura do estrelismo na profissão, que desconsidera o real caráter coletivo da produção da arquitetura e do urbanismo. O culto à genialidade do arquiteto-estrela ou “arquistar”, não só invisibiliza mulheres coautoras e sócias, mas toda a equipe que dá suporte ao processo criativo.

 

Como em todos os escritórios, as nossas ideias são traduzidas e complementadas pelos nossos colegas, em especial nossos sócios mais duradores. Diretores e assistentes podem se alternar nos papéis de criador e crítico. O star system, que retrata o escritório como uma pirâmide com um arquiteto no topo, tem pouco a ver com as relações complexas da arquitetura e construção na atualidade. Mesmo assim, como o sexismo me define como escriba, datilógrafa e fotógrafa do meu marido, o star system define nossos associados como figurantes e nossa equipe como lapiseiras.” (Denise Scott Brown)25

 

Essa visão também é limitadora do alcance da profissão, que é por natureza tão abrangente e interdisciplinar, e de seus múltiplos campos de atuação, que vão muito além da atuação em escritórios de projeto caros e/ ou funções complexas. Ao propor uma campanha por mais arquitetos “pé no chão”, a Presidente do CAU, Nadia Somekh, defende justamente a aproximação dos profissionais de arquitetura e urbanismo às reais demandas da sociedade. “É preciso valorizar as arquitetas e urbanistas e os arquitetos e urbanistas que fazem projetos de políticas públicas, de espaços urbanos, projetos de pesquisa, e muito mais.”

 

Para a Vice-Presidente do CAU, Daniela Sarmento: “A atuação das mulheres nos ambientes doméstico e público – arquitetas ou não – é capaz de reinventar a cidade e o cotidiano ao seu redor. Incluir a perspectiva das mulheres no exercício profissional e no desenvolvimento das cidades brasileiras nos traz uma nova abordagem de participação e a possibilidade de romper esses limites que definem o acesso das mulheres à cidade, tornando-as mais inclusivas e seguras para todos”.

 

A gestão 2021-2023 do CAU BRASIL tem buscado construir convergências de forma participativa para fortalecer os resultados e marcas deste triênio. O projeto de uma gestão menos centralizadora e mais “feminina” tem como ponto de partida o estabelecimento de uma rede de ação coletiva, que inclua plataformas de participação ativa e controle social, para que o Conselho possa ter braços para acompanhar e atender as diversas demandas da sociedade e da comunidade profissional, que são crescentes e complexas.

Desde a posse do novo Plenário, em janeiro deste ano, o CAU Brasil deu mais alguns importantes passos para a promoção da equidade de gênero:

O lançamento do hotsite Mulheres na Arquitetura e nas Cidades, que contém a compilação de todos os conteúdos produzidos desde a adesão do CAU aos Princípios da ONU. A ideia é dar continuidade à construção coletiva do espaço das mulheres e todas as suas interseccionalidades na arquitetura e urbanismo. A plataforma inclui, entre outros, a tabulação de uma série de matérias mostrando trajetórias inspiradoras de arquitetas e urbanistas que atuam em todo país, fruto de uma mobilização nacional das assessorias de comunicação do CAU em 2019. Em vários casos, a escolha das homenageadas se deu por votação online.

 

 

O lançamento do II Ciclo de Debates Mulheres na Arquitetura – Cidades Inclusivas para as Mulheres, que acontecerá entre março de 2021 e março de 2022. Diferentemente do primeiro ciclo, que teve como objetivo a construção da Política do CAU para a Equidade de Gênero, nesta nova rodada o desafio é traçar um projeto de ação para implementar essas diretrizes.

A etapa inaugural do II Ciclo de Debates, o evento Mulheres: da Casa à Cidade – Direitos e Cidadania em Tempos de Pandemia”26, promovido com o apoio da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), do CAU Distrito Federal e das entidades que formam o Colegiado das Entidades Nacionais de Arquitetos e Urbanistas (CEAU). O evento apresentou diversas iniciativas que integram ou abordam questões de gênero de forma transversal, como:

– O guia Gênero e Cidades: Guia Prático e Interseccional para Cidades Mais Inclusivas, desenvolvido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID);

– O Manual de Planejamento Urbano na Vida Cotidiana – com Perspectiva de Gênero lançado em 2019 pelo município de Barcelona, na Espanha;

– O guia Parques para Todas e Todos, publicado em 2019 pelo Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS);

– A pesquisa Cartografia da Covid19 e a Mulher no DF, que estuda e georreferencia os impactos da pandemia da Covid-19 sob o recorte de gênero, desenvolvida pelo Observatório Amar É Linha, da Universidade de Brasília;

 

Ilustração criada por Christiana Pecegueiro

 

Para que o Conselho possa continuar avançando na implementação da Política do CAU para a Equidade de Gênero, que tem entre as suas diretrizes a previsão de uma instância regimental com a competência de promover e mensurar a equidade de gênero e raça na profissão e em seu relacionamento com a sociedade, bem como o fomento à instauração de colegiados semelhantes nos CAU/ UF, o gabinete da Presidência vem consolidando subsídios e trabalhando com a perspectiva da criação da Comissão Especial de Gênero, Raça e Diversidade durante o mês de julho, em celebração ao Dia da Mulher Arquiteta e Urbanista.

Não se trata de levantar bandeiras, mas sim de promover a profissão da(o) arquiteta(o) e urbanista como uma contribuição ética e qualificada para o desenvolvimento da sociedade e para a promoção da justiça social. Dessa forma, o CAU Brasil prestará a sua contribuição para o atingimento dos 5º e 11º Objetivos do Desenvolvimento Sustentável: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas e tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.

Por Ana Laterza – Arquiteta e urbanista da assessoria especial da Presidência, responsável pelo desenvolvimento do 1º Diagnóstico Gênero na Arquitetura e Urbanismo do CAU Brasil.

 


Notas:
1UNIÃO INTERNACIONAL DE ARQUITETOS, Política de Equidade de Gênero em Arquitetura, 2017.

2Porcentagem total extraído do Sistema de Informação e Comunicação do CAU (SICCAU) em 2/ 6/ 21; os demais em 22/ 1/ 21.

3Dados informados pelas direções das entidades.

4PEREIRA, Cristina Kerr de Barros, O impacto do viés inconsciente na carreira das mulheres: caso de ensino, “Construtora Meirelles & Silva”, 2020.

5Dorte Mandrup: “I am not a female architect. I am an architect”, Dezeen, acesso em: 6 junho. 2021.

6BOOTH, Emily, Denise Scott Brown: “The best women architects get is student life”, Architects Journal, 2013.

7BRIGATTI, Fernanda, Pandemia deixa mais da metade das mulheres fora do mercado de trabalho, disponível em: www1.folha.uol.com.br, acesso em: 6 junho. 2021.

8CAU/ BR, 1o Diagnóstico Gênero na Arquitetura e Urbanismo, Brasília: Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/ BR), 2020.

9WRIGHT, Gwendolyn, On the fringe of the profession. Women in American architecture, in: KOSTOF, Spiro (Org.), The Architect. Chapters in the history of the profession, New York: Oxford University Press, 1977.

10CARNEIRO, Sueli, Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero.

11CRENSHAW, Kimberle, Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Policies, University of Chicago Legal Forum, v. 1989, n. 1, p. 139-167, 1989.

12LATERZA, Ana; OLIVEIRA, Lianne; ARAÚJO, Maria; FONTES, Rafaela, Interseccionalidade: Polifonia entre intelectuais negras, 2021.

13CARNEIRO, Sueli.

14CHRISTOFFERSEN, Ashlee, Intersectional Approaches to Equality Research and Data, 2017.

15CRENSHAW, Kimberle, Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Teoria Feminista e Políticas Antirracistas.

16DE KLERK, Khensani, O peixe morto na praia: o problema das “mulheres na arquitetura”, ArchDaily Brasil, acesso em: 6 junho 2021.

17Dados referentes ao primeiro trimestre de 2021, obtidos em: sidra.ibge.gov.br, acesso em 6 junho 2021.

18GONZALEZ, Lélia, A mulher negra na sociedade brasileira – Uma abordagem político-econômica, in: Lélia Gonzalez: primavera para as rosas negras., São Paulo: UCPA Editora, 2018.

19COLOMINA, Beatriz, With, or Without You: The Ghosts of Modern Architecture, in: Modern Women, Women Artists at the Museum of Modern Art, [s.l.]: Cornelia Butler e Alexandra Schwartz., 2010.

20SCOTT BROWN, Denise, Room at the Top? Sexism and the Star System in Architecture.

21CAU/ BR, Política do CAU para a Equidade de Gênero, Brasília: Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/ BR), 2021.

22LATERZA, Ana; MORENO, Julio, Inédito: visão completa sobre a presença da mulher na Arquitetura e Urbanismo | CAU/BR, disponível em: www.caubr.gov.br, acesso em: 6 junho 2021.

23BRUGUÉ, Quim; CANAL, Ramón; PAYA, Palmira, ¿Inteligencia administrativa para abordar “problemas malditos”? El caso de las comisiones interdepartamentales, Gestión y política pública, v. 24, n. 1, p. 85-130, 2015.

24Manifesto por uma cultura de sororidade no mercado da Arquitetura e Urbanismo | CAU/ BR, disponível em: www.caubr.gov.br, acesso em: 6 junho 2021.

25SCOTT BROWN, Denise, Room at the Top?

26Vídeo completo disponível no youtube

 

Publicada originalmente na revista PROJETO edição 453 (Mulheres na Arquitetura) – 2021